Título: Crimes à sombra
Autor: Cruvinel, Tereza
Fonte: O Globo, 07/07/2007, O Globo, p. 2

Gigante em mutação, o Brasil caminha desengonçado, com avanços desiguais em diferentes direções. Na mesma semana em que a União Européia o distingue como parceiro estratégico, em sinal de sua emergência no mundo, a vida doméstica é agitada por casos de corrupção e vitórias da impunidade, como esta obtida por Joaquim Roriz ao escapar da cassação pela renúncia. Mas também nesta semana a AMB (Associação dos Magistrados do Brasil) lança o movimento que, encontrando eco na sociedade, pode acabar com o foro privilegiado, que dá sombra e proteção aos crimes da elite.

É conhecida a indisposição do Congresso para mexer em regalias, mas já foi também testada sua suscetibilidade ao rumor das ruas. Os congressistas estão entre as autoridades beneficiadas pelo foro privilegiado, um universo amplíssimo no Brasil, mais amplo que em qualquer país que reserve aos ocupantes de certos cargos o julgamento pelas instâncias superiores do Judiciário. Na maioria deles, não há privilégio algum. A Constituição de 1988 alargou este universo, sob o argumento de que a passagem por certas funções sujeita o ocupante a ter que responder a milhares de ações em diversas partes deste país continental. Para algumas, como o presidente da República e os ministros de Estado, o argumento faz sentido. Mas não para o amplo universo hoje beneficiado.

Um aspecto positivo no movimento lançado pela AMB é o fato de a iniciativa ser de uma parte dos juízes. São mais de 13 mil os juízes com direito ao foro especial. Segundo a AMB, de 1988 para cá, o STF julgou apenas seis dos 130 processos que recebeu contra autoridades. O STJ recebeu 483 e só julgou 16. A certeza de que o julgamento pelos tribunais superiores jamais acontecerá, ou só remotamente pode acontecer, é que dá segurança e desenvoltura (crescente) aos que se dedicam ao delito, sobretudo ao esporte de levar vantagem em tudo à custa do dinheiro de todos. Imagina se os 32 senadores e 164 deputados que respondem a processos no STF perdem o sono por causa disso.

A sensação de impunidade, diz Rodrigo Collaço, presidente da AMB, é mais que uma sensação, é uma realidade intolerável que precisamos combater. Quando a elite fica impune, espalha-se na sociedade o descompromisso com a lei, com a ética, com as regras da vida social. O secretário nacional de Justiça, Antonio Carlos Biscaia, também acha que "esta anomalia inexistente nas democracias modernas" só terá êxito se o Congresso for sensibilizado de fora para dentro. Mas o Congresso só escuta quando o rumor junta gente nas praças.

Para acabar com o foro privilegiado, é preciso aprovar uma emenda constitucional, pelo voto de 3/5 de cada Casa do Congresso, o que jamais acontecerá se não for rompida a inércia, a resignação à impunidade como coisa da vida. Para começar, já seria um bom a passo a redução do número de autoridades com direito ao foro especial.

Mas é preciso, ao mesmo tempo, melhorar a Justiça de todos, a comum. Os sem-privilégio enfrentam burocracia, morosidade e impunidade por diferentes causas, como mostrou a série publicada pelo Globo. Na quinta-feira, antes do ato, Ideli Salvatti e senadores da CCJ criaram uma força-tarefa para selecionar e votar logo todos os projetos que alteram, neste sentido, os Códigos Civil e Penal. O primeiro mutirão, por ocasião do assassinato insólito e brutal do menino João Hélio, aprovou 24 proposições. Mas destas, só duas já viraram lei na Câmara.