Título: O pensamento dos governantes
Autor: Rosenfield, Denis Lerrer
Fonte: O Globo, 09/07/2007, Opinião, p. 7
Pouca atenção tem sido dada pela imprensa e pela mídia em geral ao III Congresso do PT, que será realizado nos dias 31 de agosto, 1 e 2 de setembro de 2007, pautando a discussão partidária para os próximos anos, incluindo as eleições municipais de 2008 e as eleições de 2010. O problema é da maior relevância, porque não se trata de uma questão apenas interna, mas diz respeito ao conjunto do país. Entre os signatários das diversas teses, encontramos ministros, governadores, prefeitos e parlamentares. Devemos saber o que pensam os nossos governantes.
O governo Lula demonstrou, em seu primeiro mandato, um forte sentido pragmático, abandonando as posições históricas radicais do seu partido. O momento mais revelador dessa mudança foi a Carta ao Povo Brasileiro, com um engajamento que, desde a perspectiva tradicional de esquerda, poderia ser denominado de conservador. Apesar do oportunismo eleitoral, a promessa foi cumprida. Nas eleições de 2006, ocorreu um processo distinto, pois, com uma alta popularidade, o presidente enveredou, no segundo turno, para uma radicalização de esquerda. O exemplo do discurso contra as privatizações foi revelador neste sentido.
O PT, neste processo, preocupou-se em ampliar o seu espaço de poder, ocupando boa parte do aparelho do Estado. Alguns setores do partido resvalaram para a corrupção pura e simples, outros assumiram uma gestão responsável do Estado, outros ainda procuraram fazer avançar o processo de radicalização política. O resultado foi uma forte desunião, com as tendências partidárias se digladiando publicamente. Os problemas éticos se acumularam sem que tenha havido nenhuma punição, como se o partido devesse apenas se acomodar a esse tipo de "erro", inevitável no tipo de luta política em curso contra a "burguesia", os "conservadores" e o "neoliberalismo". Em todo caso, não se produziu nenhuma revisão doutrinária, de tal maneira que a esquizofrenia entre a vida partidária e a governamental se acentuou.
A questão agora reside em que o III Congresso se defronta com esses problemas a partir de um linguajar tributário dessa não renovação. A discrepância só tende a aumentar, pois o governo não dá indícios de que procure uma reviravolta em sua política macroeconômica, enquanto várias tendências partidárias apregoam por uma radicalização, rumo a uma sociedade socialista. O resultado só pode ser a esquizofrenia, aliás presente em todas as teses apresentadas. Tomemos o exemplo do documento "Construindo um Novo Brasil" por ele aglutinar o ex-Campo Majoritário, de forte representação no governo federal. Pode-se dizer que este é o grupo com o qual o presidente Lula guarda maiores afinidades.
O vocabulário marxista, recuperando todo o linguajar socialista do século XX, vem acompanhado de uma defesa do governo Lula em seu caráter pragmático. Fica difícil conciliar uma não revisão doutrinária com medidas que são, afinal, capitalistas. De um lado, o documento reafirma com força o perfil "socialista" do partido e do governo. Para se ter uma idéia mais precisa, as palavras "socialismo" e "socialista" têm 56 incidências num texto de 25 páginas. De outro lado, o documento defende todas as iniciativas tomadas pelo governo. Considerando-se que se trata de uma impossível conciliação, medidas que qualquer governo capitalista poderia tomar, como o PAC, são consideradas como situadas no caminho do socialismo.
Uma outra corrente, a Articulação de esquerda, é ainda mais clara. "Nossa defesa do socialismo baseia-se, exatamente, na crítica ao capitalismo, aos seus efeitos destruidores sobre a Natureza e sobre a Humanidade." Pode-se dizer que essa posição anticapitalista é compartilhada por todas as tendências, conformando o imaginário partidário. Para eles, o capitalismo seria igual à barbárie, sendo, contra todas as evidências históricas, contrário às liberdades democráticas, enquanto o socialismo seria a redenção da Humanidade. Ora, o socialismo, lá onde se implantou, eliminou todas as liberdades, tendo feito daqueles países uma grande prisão, em alguns casos campos de extermínio ou de "educação", como diziam. Os exemplos de ex-União Soviética, Camboja, Cuba e outros estão aí para todos aqueles que tenham os olhos abertos e o pensamento livre.
DENIS LERRER ROSENFIELD é professor de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.