Título: O taxista e o governador
Autor: Oliveira, Rosiska Darcy de
Fonte: O Globo, 11/07/2007, Opinião, p. 7

Um homem dirigia seu táxi na madrugada. Há um cansaço imenso em quem dirige à noite e há também o medo, já que, a qualquer momento, um assassino se senta no banco de trás. Dessa vez o perigo veio da calçada. O taxista viu a mulher, no ponto do ônibus, ser espancada por um grupo de homens e anotou a placa do carro dos agressores. Não deu de ombros, não achou normal, não achou que era inútil, que não daria em nada. Não foi cuidar da sua vida. E assim, nesse gesto banal, cuidou da vida de todos, da tão conturbada vida de nossa cidade.

Um simples número anotado e um crime imundo se desvenda. Salva-se a dignidade de uma mulher, expõe-se à execração a bestialidade de marginais, aciona-se a máquina da justiça que, sob a vigilância cada vez mais implacável da imprensa e da população, talvez agora não ouse enguiçar. Há criminosos no Rio, mas há também o motorista, um ser humano capaz de se indignar e, sobretudo, de agir. Nem tudo está perdido.

A impunidade da violência e da corrupção mina nossa democracia. É a causa da amargura que enferruja, nas pessoas, o sentimento de solidariedade e a dignidade de cada um. Repetidamente impunes, elas criam uma espécie de indignação cansada, vencida pela suposta impotência, instalada no conformismo e no desamparo de quem é diariamente desrespeitado sem conseguir se defender.

Por que ninguém faz nada? Mas fazer o quê? Essa a voz corrente, o lugar- comum em todas as conversas. Faz-se, então, a catarse, falando mal de tudo e de todos: que esse país não tem jeito, que ninguém presta, que nada adianta. Queixar-se a quem? À polícia corrupta, aos políticos bandidos? Quem tem vocação para herói? Vai se desenvolvendo uma espécie de masoquismo, um gosto pela vitimização e pela lamúria, vala comum onde se enterram os ideais e a fé na democracia, deixando o campo livre a deus sabe que monstros.

O taxista, um homem comum, longe de ser um herói, não perguntou a ninguém e soube o que fazer. Esse taxista é um cidadão da mesma cepa da senhora idosa que, em Copacabana, filmou os traficantes. Seu exemplo já foi seguido por outro taxista que presenciou uma agressão similar a um salva-vidas e à sua namorada.

O exemplo do motorista de táxi tem a força de uma parábola. Mirar-se nele e voltar a acreditar no poder dos pequenos gestos exemplares, ao alcance de todos, já seria um bom remédio contra a paralisia. Se cinco malfeitores espancaram uma mulher, quantas pessoas manifestaram sua repulsa? O pai e os patrões da vítima, o porteiro do prédio, os amigos, a imprensa, os milhares de leitores, as prostitutas, como sempre humilhadas pela arrogância e a crueldade, todos do lado da vítima, todos contra os bandidos agressores. Todos exigindo justiça, graças a quem anotou uma placa. E, sobretudo, graças à extraordinária coragem de Sirlei que reconheceu os bandidos, a verdadeira e principal heroína nessa história.

A Sirlei, doeu-lhe no corpo a brutalidade. Ao anônimo motorista, doeu-lhe na alma a cena a que assistiu. Em face de quantas iniqüidades calamos? E os gestos que não fazemos porque dão trabalho ou porque implicam riscos?

Somos muitos, muitos mais do que o punhado de bandidos de colarinho branco ou torso nu, a querer vida civilizada, comportamento honesto, respeito e dignidade para todos. Somos milhões a querer uma democracia de verdade que tenhamos vontade de defender. Uma democracia que assegure as regras de convivência e o respeito à lei é o nosso grande desafio. De quem não dá e não recebe propinas. De quem não espanca ninguém e não aceita que alguém seja espancado. Os que somos a imensa maioria, ainda que intimidada e perplexa.

O que põe a democracia em risco é a corrosão das instituições. O Congresso é objeto de merecida chacota nacional. A Justiça, sem autoridade, está enfraquecida pelo espetáculo patético de condenações que ela mesma impede que sejam executadas e, pior, também salpicada pela corrupção. Um tranco mais forte e esta democracia corroída desaba. E quem a sustentará? Com certeza, não os desiludidos. A desilusão, esse efeito colateral, pode ser mais letal que a violência e a corrupção.

O governador Sérgio Cabral disse, com razão, que, no Rio, chegamos a uma encruzilhada entre a civilização e a barbárie. Ao enfrentar o desafio do tráfico, assumiu o comando da luta contra a impunidade. Comportou-se com a autoridade e a responsabilidade que o cargo lhe confere. Quem se queixava de desgoverno já não deve fazê-lo.

Do taxista ao governador, é possível que se esteja criando, no Rio, uma energia nova. Talvez tenhamos atingido, enfim, o ponto de inflexão, quando as coisas mudam, momento catalisador de uma atitude construtiva que, vencendo a desilusão, nos anime, todos, para além das queixas, a traduzir nossa indignação em atos. Modestas que sejam, mas cotidianas, essas posturas ajudarão decisivamente o governador em sua difícil e corajosa travessia da tragédia em que o Rio se transformou.

ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA é escritora e presidente do Centro de Liderança da Mulher. E-mail: rosiska.darcy@uol.com.br.

N. da R.: Roberto DaMatta está em férias.