Título: Luta contra impunidade exige pressão popular
Autor: Lima, Ludmilla de e Marqueiro, Paulo
Fonte: O Globo, 13/07/2007, O País, p. 12

Participantes de debate "Encontros O GLOBO" dizem que sociedade deve combater todo tipo de transgressão.

Só com uma forte pressão social e uma mudança de consciência dos cidadãos será possível construir uma sociedade mais justa. Esse foi o pensamento que dominou o debate "Encontros O GLOBO - Impunidade", na noite de quarta-feira, no auditório do jornal, reunindo o antropólogo Roberto DaMatta, o desembargador e ex-juiz criminal Geraldo Prado, o presidente da OAB do Rio de Janeiro, Wadih Damous, e o diretor da ONG Transparência, Cláudio Weber Abramo. O mediador foi Chico Otávio, um dos autores da série de reportagens sobre impunidade iniciada em 17 de junho.

Enquanto Da Matta mergulhou nas raízes da impunidade no Brasil, sustentando que somente com mudanças nas ações cotidianas dos brasileiros seria possível inverter esse quadro, o presidente da OAB atacou o foro privilegiado na política. Para Damous, só uma grande mobilização popular poderia forçar o Congresso a fazer alterações na Constituição que acabassem com benefícios como o foro privilegiado. Ele defendeu também alterações na estrutura dos tribunais superiores, para torná-los mais aptos a julgar casos envolvendo políticos acusados de corrupção.

- Na política, a OAB marcha com a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) no repúdio à extensão do foro privilegiado, que é um fator objetivo de impunidade. Qual o problema quando se atribui o foro aos tribunais superiores? Não são tribunais preparados para interrogatórios. No Supremo, é difícil você encontrar um juiz de carreira. Talvez seria o caso de se criarem juizados de instrução nesses tribunais superiores - afirmou o presidente da OAB.

Segundo ele, numa reunião do colégio de seccionais da OAB em Brasília, esta semana, entidades de todo o país criticaram o foro privilegiado e recomendaram o licenciamento do presidente do Senado, Renan Calheiros, pivô de uma crise que já começa a abalar a credibilidade da Casa. Damous revelou ainda que a OAB do Rio Grande do Sul fará hoje um ato público para protestar contra a permanência do presidente do Senado e a figura do foro privilegiado. Damous acredita que a manifestação ganhará corpo e acabará se espalhando por todo o país.

DaMatta: mudar o cotidiano

Já o antropólogo Da Matta concentrou seu discurso nas relações cotidianas, especialmente na maneira como as pessoas lidam com a lei e as normas, de modo geral. Para ele, há um distanciamento entre o mundo público e a prática cotidiana. Ele citou como exemplo uma das reportagens da série do GLOBO Impunidade - O Brasil vive o crime sem castigo, que mostra uma realidade na qual brasileiros não dão importância aos pequenos delitos, como se esses também não fossem crimes.

- Nós somos excelentes legisladores, temos condições de resolver tudo no papel, mas não para honrar o que foi acordado. Precisamos fazer uma crítica séria do cotidiano. Precisamos de um rasga coração, de uma reflexão mais profunda de nossas relações cotidianas - disse.

O antropólogo citou exemplos recentes para mostrar até onde chega a impunidade:

- O que acontece no Brasil é que várias dessas transgressões, que vão desde um crime ao desgerenciamento e à ofensa aos pagantes de impostos, se transformaram em rotina. É o caso do apagão aéreo, em que uma ministra do turismo diz "relaxa e goza", o que não só é um aval para o desgoverno, mas também um insulto, pelo menos a mim, pessoalmente, que estou pagando o salário dessa ministra.

De acordo com DaMatta, que na década de 70 pesquisou a genealogia do "você-sabe-com-quem-está-falando?", a busca de sociedade mais justa e igualitária não pode abrigar qualquer tipo de tolerância ao crime:

- Ninguém quer que se mate um inocente. Chacinar é uma coisa, prender criminoso é outra bem diferente. Temos de prender todos os tipos de criminosos: de colarinho branco, de colarinho preto, sem colarinho. Qual é a nossa relação com a lei quando esse criminoso é uma pessoa próxima? Quando essa vítima do crime também é uma pessoa próxima?

DaMatta explorou também a incoerência de um país com economia de mercado que consegue controlar a inflação e ter uma situação econômica estável e, ao mesmo tempo, apresentar uma total ineficiência do serviço público, marcado por denúncias de corrupção:

- O problema é que nós não educamos as pessoas para conviver no espaço público de maneira igualitária. A questão fundamental neste século é a igualdade como um valor, como um ideal humano de democracia.

Já o palestrante Cláudio Abramo enfatizou a injustiça do sistema judicial brasileiro, o que, segundo ele, inclui desde o Judiciário até as polícias, passando pelo Ministério Público.

- O sistema judicial brasileiro é feito para os ricos. Ele funciona de tal maneira que, se o individuo não tiver dinheiro para pagar advogado, é condenado na primeira instância. Mas essa não é a situação de políticos e agentes públicos, que se aproveitam desse sistema para encher os bolsos - disse Abramo. - Uma das responsabilidades para a sensação de impunidade é a extraordinária ineficiência e a desfuncionalidade de todo o sistema judicial brasileiro.

De acordo com Abramo, o julgamento de qualquer processo de improbidade administrativa demora até 12 anos para chegar a um ponto em que é possível uma sentença. Essa estrutura farta de recursos, segundo ele, faz com que muitos corruptos não sejam punidos. Ele destacou ainda a dificuldade e os custos de se investigar casos de corrupção:

- O Ministério Público de São Paulo gastou US$200 mil para investigar a rota do dinheiro do Maluf.

Em relação à questão do foro privilegiado, Abramo disse não acreditar que o Congresso mude a Constituição, pois estaria agindo contra ele próprio. Por isso, diz que mudanças na lei para acabar com privilégios e a impunidade só mesmo com pressão da sociedade.

Abramo disse que para combater a impunidade é preciso ir além do sistema judicial, atacando as raízes da desigualdade social.

- Não vai haver um sistema equânime numa sociedade desigual. Vivemos num país dividido, e um país dividido é assim: não tem justiça.

O tema da desigualdade relacionado à Justiça foi abordado também pelo desembargador Geraldo Prado, que começou seu discurso questionando o conceito de impunidade. Ele apresentou dados do Ministério da Justiça para mostrar que, em 2005, havia 296.919 pessoas presas, das quais 32 mil estavam detidas sem sentença condenatória. Em 2006, acrescentou ele, esse número subiu para 339.580, sendo 112 mil sem sentença condenatória.

- É correto falar em impunidade quando se pune tanto no Brasil? - provocou Geraldo.

Ele destacou, no entanto, que, apesar do aumento de pessoas presas, fala-se cada vez mais em impunidade. A questão, diz ele, é que apenas parte da sociedade é punida.

Para Geraldo, o problema da impunidade não pode ser tratado apenas na área de segurança e Justiça. É preciso avançar, diz ele, na área social:

- Não é por meio de uma política de segurança que vamos resolver o problema da impunidade, mas através de uma política social.

Ele disse ainda temer que a discussão sobre impunidade acabe negando valores do estado de direito:

- O meu medo é que, sob as luzes, o tema se transforme em mais uma grande aventura para um retrocesso cultural.

Críticas a revistas policiais

Durante o debate, os participantes criticaram a revista policial em crianças e moradores de favelas em geral, como ocorreu recentemente durante a ocupação, pela polícia, do Complexo do Alemão.

- Se há suspeita do crime, pode haver a revista. Se não há, é preconceito social - disse Geraldo Prado.

Damous informou que a OAB havia conseguido uma liminar na Justiça para impedir a revista de crianças, mas que ela acabou sendo cassada. O presidente da OAB-RJ questionou também o tratamento dado a diferentes setores da sociedade que cometem crimes parecidos.

- Aqueles jovens que agrediram a empregada (Sirlei Dias) são jovens de classe média. Se fossem da favela, seriam chamados de quadrilha, de gangue.

Geraldo Prado também critica as revistas policiais que, segundo ele, são dirigidas a apenas um grupo da sociedade. O que foi endossado por Damous:

- Há uma completa inversão de valores. Se não forem nossas crianças, filhos de nossos amigos e parentes, é perfeitamente justo. Como colocar como suspeita uma criança de uma área não estigmatizada?

Damous disse que os casos da chacina do Carandiru, em São Paulo, e da Favela de Acari, no Rio, são emblemáticos em termos de impunidade:

- A PM cometeu a chacina, e o coronel Ubiratan foi candidato a deputado com o número 111, que é o número de mortos no Carandiru. A Chacina de Acari permanece sem esclarecimento até hoje. Não foi aberto nem inquérito.

Quando um dos participantes perguntou a DaMatta se não há solução para o problema da impunidade, ele respondeu:

- Tem que ter um recall, uma forma de o povo retirar o seu voto. Não é possível ter essa gestão pública absolutamente ineficiente - disse o antropólogo, que voltou suas críticas também ao cidadão comum. - Se eu estou comprando um DVD pirata, eu posso. Se for o vizinho, não.