Título: O canal do Amazonas
Autor: Macieira, Flávio Helmold
Fonte: O Globo, 20/07/2007, Opinião, p. 7

Revoluções silenciosas e espetaculares se encontram em marcha na América do Sul, no campo da integração física continental. A conjuntura favorável da economia mundial e o "desenvolvimentismo responsável" professado pelos governos sul-americanos da atualidade têm permitido pactuar um ambicioso conjunto de obras que se destinam a reforçar a infra-estrutura de transportes sul-americana de forma a criar condições efetivas para o planejado aprofundamento da integração econômica entre os países do continente.

O projeto de ligação multimodal entre o porto de Manta, no Equador, e os portos de Manaus e Belém é uma dessas obras de imenso - e ainda não de todo estimado - potencial de resultados. Trata-se de realizar o sonho de vários séculos, presente na ação exploradora e colonizadora de Francisco de Orellana, Pedro Teixeira, dos Jesuítas, e no delírio ficcional de Fitzcarraldo: unir o Pacífico ao Atlântico. Tem de original o fato de aproveitar o rio-mar amazônico como via natural interoceânica, abrindo, em pleno coração da América do Sul, uma alternativa viável ao Canal do Panamá. E o melhor é que o faz de forma limpa, barata e sustentável.

Com 250 mil habitantes, a cidade de Manta não padece das mazelas do gigantismo urbano. Seu porto está apto a operar com variada gama de mercadorias. É um porto de águas profundas, que conta com amplo espaço para expansão de suas áreas de armazenagem e deslocamento de carga. Encontra-se sob a administração da maior empresa portuária do mundo, a Hutchison, de Hong Kong, que realiza presentemente vultosos investimentos para sua ampliação e seu aparelhamento.

Sua situação geográfica é privilegiada em relação ao Extremo Oriente, uma vez que está no ponto mais a oeste da América do Sul, pode receber os navios de maior calado hoje operantes no mundo e dista apenas 23km da rota de navegação de grande porte no Pacífico. Está apto, igualmente, a realizar transbordos para transporte aéreo, a baixo custo.

O aeroporto de Manta é habilitado à operação de grandes aeronaves. Já existe um acordo aéreo entre Brasil e Equador, que permite a abertura imediata de uma linha, para transporte de carga, por avião, entre Manta e Manaus. Sua entrada em operação antecipará, em parte, a operacionalização do eixo de transporte multimodal Manta-Manaus.

De Manta para o interior, em direção à Amazônia, o projeto incorpora 700km de estradas de rodagem, em território equatoriano, que serão devidamente consolidadas e melhoradas (e desses trabalhos poderão participar construtoras brasileiras de primeira linha).

A etapa fluvial da via se inicia no porto de Francisco de Orellana, no Rio Napo, que nada mais é do que um braço do Alto Solimões. Muito embora o Rio Napo já seja navegável na atualidade, deverão ser realizados, em alguns de seus trechos altos, trabalhos tópicos de desassoreamento ou de retirada de obstáculos à navegação.

Em abril de 2007, o presidente do Equador, Rafael Correa, foi recebido, em Brasília, pelo presidente da República. Na ocasião, os dois presidentes concordaram em construir uma via de circulação (dita multimodal, por conjugar rodovia e hidrovia - com módulo ferroviário previsto para o futuro), ligando o Brasil ao Equador de forma a possibilitar aos dois países se aproximarem economicamente, vencendo, com absoluto respeito à ecologia, as barreiras geográficas impostas pela cordilheira e pela selva.

Da visão progressista dos dois chefes de Estado surgiu uma intenção comum forte, necessária à superação das dificuldades envolvidas. O eixo Manta-Manaus vem a ser o maior projeto de desenvolvimento da gestão Correa. Para o Brasil, trata-se de um projeto de interesse estratégico, por abrir, para a economia brasileira, um acesso competitivo ao Pacífico.

Com o projeto, as possibilidades de desenvolvimento sustentado regional se multiplicam exponencialmente. O corredor permitirá o aprovisionamento da maior Zona Franca brasileira em insumos que necessita importar do Oriente, e que hoje ingressam no Brasil encarecidos pelos custos de trânsito. Facilitará, por outro lado, a exportação de uma gama considerável de produtos brasileiros para o Oriente. Entre estes, além dos produtos da própria Zona Franca, é possível citar a soja, o etanol, as commodities minerais. E não deve ser esquecido o potencial turístico do projeto, capaz de permitir circuitos compreendendo locais míticos da região, como Marajó, Belém, Santarém, Manaus/Encontro das Águas, Iquitos, e, daí, subindo a Cuzco, Machu Picchu, Nazca, Lima, Quito, Galápagos. "Turismo multimodal" em roteiros integrados, com atrativo ecológico e cultural.

Trata-se em verdade de um projeto tripartite, já que algo como 900km de via fluvial do eixo Manta-Manaus se encontram em território peruano. O sistema econômico peruano tem muito a ganhar com a abertura do novo eixo de circulação.

A via é facilmente comunicável com o restante da rede de transporte do Peru, e se integra, de forma natural e complementar, aos eixos de ligação interoceânica que se abrem igualmente a partir dos portos peruanos. A oferta de produtos do Peru e do Equador (alimentos, fertilizantes e materiais de construção, por exemplo) no mercado amazônico brasileiro deverá melhorar consideravelmente o abastecimento das cidades da Região Amazônica.

Não está longe, portanto, o dia em que o canal do Amazonas funcionará como rota interoceânica alternativa para o comércio intercontinental, e constituirá um novo motor de desenvolvimento de alta potência, para as economias internas do Peru e do Equador, bem como da Amazônia brasileira. Não deixará de gerar efeitos positivos, igualmente para o restante do sistema econômico sul-americano.

A tarefa de informar a opinião pública do Brasil, do Equador e do Peru sobre o projeto Manta-Manaus é essencial e urgente. O conhecimento prévio do potencial da obra permitirá que esses três países, suas populações, suas empresas, seus governos, preparem-se convenientemente para estar à altura das exigências em termos de mobilização, de espírito público, sentido de planejamento, criatividade empresarial e consciência ecológica, que não deixarão de resultar do projeto.

FLÁVIO HELMOLD MACIEIRA é diplomata.