Título: Cenas em bastidores de sucessivos governos
Autor: Novo, Aguinaldo
Fonte: O Globo, 21/07/2007, O País, p. 20

Senador teve encontros secretos com Ulysses e Lula, que lhe confidenciou seus desafetos, e trocou cartas com FH.

BRASÍLIA. Durante todo o governo Sarney, ninguém nunca registrou sequer um bate-boca entre as duas principais lideranças da chamada Aliança Democrática: ACM e Ulysses Guimarães. Eram adversários que se respeitavam, ainda que um guardasse mágoas do outro.

Para não dizer que nunca houve, há apenas um registro: quando, na Constituinte, Ulysses chamou de "os três patetas" os integrantes da Junta Militar que outorgou a Constituição de 69, ACM o desafiou: "Queria ver ele dizer isso quando os três estavam vivos e no poder. Depois de morto, é fácil". Ulysses não respondeu à provocação.

No início do governo Collor, quando as coisas se agravaram para o lado do ex-presidente, ACM me procurou para eu mediar um encontro seu com Ulysses, lembrando minha condição de ex-assessor de imprensa dele, Ulysses. Recusei a missão, alegando que havia voltado ao jornalismo e aquele papel era incompatível com o exercício da minha profissão. ACM, então, procurou um amigo comum de Ulysses, que acabou promovendo esse encontro. Eu, que conhecia o estilo e o pensamento tão divergente dos dois, fiquei excitadíssimo com o que poderia sair desse encontro. A minha recusa não me livrou do compromisso do "off": eu estava impedido de divulgar o encontro. Mas eu queria informação.

O encontro foi na hora do "Jornal Nacional". Para poder trabalhar com o fato, revelei esse encontro a um colega da TV Globo que, ao vivo, anunciou: "Neste momento, estão reunidos num escritório de um amigo comum em Brasília o ex-presidente do PMDB, Ulysses Guimarães, e o governador da Bahia, Antonio Carlos Magalhães".

O diálogo entre ACM e Ulysses

Pronto, eu estava à vontade para ouvi-los. Do que eu ouvi dos dois, pude montar todo um diálogo, cujo resumo é este:

ACM: - Quer dizer então que a oposição quer tirar o Collor?

Ulysses: - Queremos apenas que se apure o que está acontecendo, governador.

ACM: - O senhor é a favor que se instale essa CPI que o Lula e o Tasso estão querendo?

Ulysses: -- Tenho posição diferente. CPI, acho que o governador concorda comigo, a gente sabe como começa, mas não sabe como termina. Temos instrumentos institucionais para promover as investigações, sem os riscos de uma CPI. Temos, por exemplo, a Procuradoria-Geral da República e o Tribunal de Contas da União, que, por terem seus integrantes aprovados pelo Congresso, já representam o Poder Legislativo.

ACM: -- Finalmente, a gente concorda numa coisa.

Ulysses: - Mas e se descobrirem que tudo isso é verdade?

ACM: - Essa é a questão.

Ulysses: - Acho que, diante de uma eventual comprovação das denúncias, teríamos que fazer alguma coisa. A morte de Tancredo foi um teste para a democracia. Se o povo não estivesse do nosso lado, não aceitaria a posse do Sarney. Agora, Collor está sendo desmistificado. É diferente. Se ele permanecer, vai ser um "pato manco".

ACM: - E aí, o que sugere?

Ulysses: - Deveríamos criar informalmente uma comissão de notáveis para governar o país na prática. Faltam só dois anos. Collor seria refém dessa comissão. Essa comissão tomaria mensal ou quinzenalmente seu dever de casa, para ver se ele está cumprindo a missão.

ACM: - E se não tiver?

Ulysses: - Aplica-se um corretivo nele, como se faz com os meninos travessos.

ACM: - E, para variar, o senhor estaria nessa comissão. Aqui entre nós, mandando como fez com o governo Sarney.

Ulysses: - Governador, o senhor sabe que se eu tivesse mandado tanto como diziam e o senhor tivesse essa sede de se agarrar ao poder como dizem, nós dois não estaríamos aqui hoje conversando.

Essa história toda não foi publicada. Mantive o compromisso do "off" com os dois. Como era inevitável, ACM, depois da morte de Ulysses, andou contando-a em fragmentos. E dava gargalhadas todas as vezes em que, até pouco tempo, repetia esta frase: "O Velho (ele se referia ao Ulysses assim) queria tutelar o Collor com palmatória na mão, como se faz com um menino levado!"

ACM era candidato à presidência do Senado contra a vontade do filho Luís Eduardo, então presidente da Câmara. Alegava o deputado que, por não conhecer o Congresso e Brasília com todos seus códigos, apesar de ter morado na cidade como ministro de Sarney, o pai iria quebrar a cara. E lembrava não ser tradição da Casa eleger senadores de primeiro mandato. Mas, àquela altura, ninguém mais segurava ACM. Empolgado com a possibilidade de, pelo menos por um dia, pai e filho ocuparem simultaneamente, como aconteceu, as presidências da Câmara e do Senado, ele seguiu em frente.

Animou-se quando soube que Lula estaria orientando os petistas a optarem por ele e não por Iris Rezende, candidato do PMDB. Procurou então um amigo em comum, Márcio Thomaz Bastos, para promover seu encontro com Lula, o que acabou acontecendo em São Paulo e, pasmem, na casa do então senador Gilberto Miranda. Um detalhe: Luís Eduardo implicava com essa amizade do pai com Gilberto Miranda e, nisso, era estimulado também por Fernando Henrique. Os dois pareciam ter razão, pois a primeira pessoa que informou FH da existência do "dossiê Caymann" acabou sendo o próprio ACM. Coincidentemente, eu estava na sua casa no dia em que Miranda entregou-lhe cópia do dossiê. Tentei ver seu conteúdo, mas ACM recusou-se a mostrá-lo e disse que só o entregaria a Fernando Henrique. Parecia um conquistador que tinha comprado um presente irresistível para conquistar o coração da namorada:

- O Fernando Henrique ainda implica com a minha amizade com o Gilberto Miranda. Se eu não estivesse perto do Gilberto, não saberíamos o que andam aprontando contra ele. Ele deveria me agradecer.

Voltemos ao encontro com Lula. ACM, nesse particular, era que nem eu: todas as vezes em que recebo um telefonema da Mariana Ximenes, conto até para o guarda da esquina, quando não boto no jornal. Ele ter um encontro secreto com Lula e não contar a ninguém? Não seria ACM se não contasse. E não escolhia confidente. Nesse caso, fui seu guarda da esquina:

- Não comente com o Luís Eduardo, pois eu disse que só ele sabe. Mas eu vou me encontrar com Lula em São Paulo. Você nem imagina que seja na casa do Gilberto Miranda, né? Mas não ficaria surpreso se eu lhe dissesse que quem vai mediar esse encontro é o Márcio Thomaz Bastos. E ACM sempre foi muito amigo do ex-ministro da Justiça. Ele adorava Thomaz Bastos, a quem considerava um dos melhores criminalistas do país. Só reclamava de uma coisa:

- O Márcio é bom. O problema é que é muito careiro! Às vezes por uma bobagem, uma ação fácil. Mas é bom. Seus custos são didáticos. Assim, as pessoas pensam duas vezes antes de cometer um delito.

Retomemos ao encontro. ACM, excitado, prometeu-me:

- Se você preservar o "off", na volta te conto tudo.

Dia seguinte, amanheci no hotel onde morava:

- Seu Moreno, eu não sabia que o Lula odiava tanto o Roberto Freire. Muita coisa do que ele falou do Freire eu acho injusta. Quase que eu o defendo.

E desfiou um a um os nomes de todos os desafetos de Lula. Estava muito animado, pois Lula lhe confidenciara que nunca apoiaria a candidatura de Iris Rezende porque este, como governador, tirou uma eleição ganha do PT à Prefeitura de Goiânia.

E vocês, leitores, acham que só eu fui depositário das confidências dessa picante conversa? Enganam-se, ACM não se conteve. Depois que ganhou a eleição, nos seus embates com cada uma das vítimas da língua ferina de Lula, insinuava: "Agora entendo as razões das restrições de Lula a V. Excia". Fez isso com vários parlamentares. Se não o fizesse, não seria ACM.

Durante quase todo o governo FH, ACM nunca fez o menor gesto para conter a fama de que mandava no presidente. Ao contrário. Mas, na intimidade, confessava o ciúme pelo excelente relacionamento entre Fernando Henrique e o filho Luís Eduardo. Quando FH interrompeu uma viagem para comparecer ao velório de Luís Eduardo, ACM proclamou em discurso que, por causa disso, jamais romperia com o presidente. Mas a lua-de-mel durou pouco. Numa viagem ao exterior, ACM desafiou tanto FH que ao presidente não restou alternativa a não ser demitir seus apadrinhados no governo.

- Eu, rompendo todo o protocolo, dei uma banana para o rei da Espanha e voltei para consolar o Antonio Carlos, e o que recebo em troca?

Só recentemente os dois fizeram as pazes. Fernando Henrique foi um dos últimos líderes políticos a ver ACM no Incor.

Mas o grande embate entre os dois surgiu poucos meses depois da morte de Luís Eduardo. ACM tentou barrar a indicação de Ney Suassuna para líder do governo no Senado. Procurou o presidente e sugeriu-lhe o nome do então senador José Fogaça, hoje prefeito de Porto Alegre. Também no seu estilo, FH concordou imediatamente.

- Posso sondá-lo? - perguntou ACM.

-- Não pode, deve - respondeu-lhe o presidente.

Dias depois, ACM foi surpreendido pela confirmação do nome de Suassuna para líder. Fui até sua residência ouvi-lo e o encontrei ditando à secretária uma carta a FH. Na carta, o tempo todo, ACM invocou o nome de Luís Eduardo. Todas as vezes em que o citava, caía em prantos. Fez questão de que eu testemunhasse sua dura e desafiadora carta ao presidente, cobrando coerência e cumprimento da palavra empenhada. Dizia que Suassuna era figura folclórica e não estava à altura do cargo. Passado um tempo, cobrei:

- O presidente respondeu?

- Respondeu sim, e com muita competência devolveu-me as insinuações.

Carta de FH ficou para a história

Surpreendi-me com a resposta, já que ACM era conhecido por revelar vantagens, não prejuízos. E me leu a resposta, na verdade um desabafo contundente com graves críticas ao Congresso. Pedi-lhe então:

- Senador, deixa eu publicar. Essa é uma carta-bomba! - Se eu divulgar, provoco uma crise. Mas na verdade, essa carta ele não escreveu para mim, escreveu para a História. Vai deixar nos arquivos.

Claro que havia outros motivos para ACM não querer divulgar essa carta. Nela, realmente, FH era duro com o destinatário. Por exemplo, aproveitou o fato de ACM ter invocado o nome do filho para dizer que, em suas intermináveis conversas com Luís Eduardo, sempre reconheceram que os coronéis da política eram os maiores entraves para a reforma do Estado, principalmente nas regiões mais carentes. Acusava o Congresso de ser culturalmente um centro de interesses corporativos e fisiológicos. Mas reconhecia que foi esse o Parlamento que o povo lhe deu e que, para fazer as mudanças necessárias, ou negociava com esse Congresso ou mandava fechá-lo. E insinuava que essa segunda opção nunca estaria nos planos de um democrata, ainda que pudesse satisfazer políticos sem essa vocação. FH ressaltava que, sem uma profunda reforma política, qualquer que fosse o seu sucessor, por mais legitimidade que tivesse, sempre seria refém das forças conservadoras e fisiológicas que sempre foram as marcas do Parlamento brasileiro. E concluía que pouco adiantava renovar quadros e não os costumes.