Título: Verso e reverso
Autor: Leitão, Míriam
Fonte: O Globo, 21/07/2007, Economia, p. 38

O pior erro que o governo pode cometer está simbolizado nos gestos grosseiros de Marco Aurélio Garcia e de seu assessor: é comemorar a hipótese do defeito na turbina. O gesto de Garcia confirma o defeito da atitude do governo desde o começo; achar que tudo é uma briguinha política e ter uma visão apenas pontual de cada evento. Tomara que as notícias dadas pelo presidente Lula em seu pronunciamento sejam o começo de um novo tempo.

Como disse o gaúcho enlutado Pedro Simon, a culpa é do governo. Ponto. Seja qual for a falha mecânica que, ao fim das investigações, ficar ou não provada. Fatalidades acontecem em qualquer país. Mas, no Brasil, o que houve foi a reiterada subestimação da crise aérea, a incúria administrativa, erros na alocação dos recursos, colapso gerencial, loteamento político de órgãos estratégicos. Num sistema que não funciona bem, falhas pontuais são mais freqüentes. Onde não há supervisão, fiscalização e regulação adequadas os riscos são maiores. Ao não entender isso, o governo relaxou a cada explicação dada sobre um evento específico e não viu a deterioração generalizada no transporte aéreo de passageiros. Isso é o que está escrito nos gestos grosseiros de Garcia e de seu assessor Bruno Gaspar. Não é um desabafo que qualquer "pessoa de bom senso faria". É a eloqüente informação de que, de novo, o Palácio do Planalto está pensando errado, está avaliando de forma leviana uma crise grave, está numa disputa política, e não no responsável ato de governar o Brasil. É ato de uma pessoa insensata. Não é um desabafo. Os dois gestos, tanto o de Marco Aurélio quanto o de Bruno Gaspar, são conhecidos por todas as culturas e vencem a barreira das línguas. Todos sabem e entendem o que quiseram dizer. Menos eles, que tentaram dar uma nova definição para os gestos: a da indignação. Tentaram. Ninguém acreditou.

Vamos entender quem fala por gestos na vitrine do Palácio: é o homem de confiança de Lula, com múltiplas funções. É, pelo menos na prática, o ministro das Relações Exteriores para a América Latina e também supervisor da diplomacia brasileira. É o estrategista e ideólogo do Palácio. É a peça-chave para momentos de crise, como a que houve quando a cúpula do PT foi abatida pelo escândalo do dossiê falso comprado com dinheiro de origem duvidosa. Naquela ocasião, foi ele quem assumiu o PT. Foi o coordenador da campanha eleitoral do segundo mandato. Não foi gesto impensado, foi revelação de como se pensa no Planalto. Não foi um assessor menor, mas uma peça-chave na estrutura de poder da República petista.

Sinceramente compungido, mas atrasado, o presidente ontem lamentou as mortes e se comprometeu a apurar as causas do acidente. Informou sobre várias providências, que incluem a redução do tráfego em Congonhas e a construção de um novo aeroporto em São Paulo. Essas medidas vêm atrasadas, mas, de qualquer forma, é importante que tenha, enfim, caído a ficha de que o governo tem a responsabilidade de gerenciar a crise e evitar a reiteração dos erros.

No pronunciamento, o presidente se comprometeu a fortalecer a Anac, a Agência de Aviação Civil. Se quiser cumprir o que disse, tem que começar demitindo todos os indicados políticos. A Anac nasceu para suceder a velha agência reguladora capturada pelo regulado, que foi o DAC. Como o governo errou ao escalar as pessoas para dirigi-la e, diante da comprovação de que eram os nomes errados, manteve-os, a agência foi persistindo nos erros. Se ela é hoje fraca (e, por isso, precisa ser fortalecida) é porque assim o governo quis até agora. O esforço de quebrar a independência das agências, colocá-las na barganha política, retirar seus recursos foi um plano executado com precisão desde o dia em que Lula disse que elas eram a "terceirização do governo". Não são. As agências independentes no mundo todo são fundamentais para melhorar a governança. A chance de mudar isso desponta com a nomeação de Ronaldo Sardenberg, um quadro do Estado brasileiro, que não veio do setor de telecomunicações, mas cumpriu sempre com precisão as missões para as quais foi escalado. Nele repousa a esperança de começar a mudar a politização das agências. Contudo, um Sardenberg só não faz verão. O governo tem que recrutar as pessoas certas para comandar a Anac, fortalecer os quadros novos que estão entrando na agência por concurso, construir nela uma cultura da independência e da eficiência.

A culpa da crise é do governo e de ninguém mais. É um espanto que tenha se reunido uma única vez o Conac, órgão maior de supervisão do setor, desde a queda do avião da Gol, e ignorado o alerta do ex-ministro José Viegas para o risco de deterioração do sistema.

O governo errará se culpar Congonhas. Faz certo ao aliviá-lo porque o peso jogado sobre ele nos últimos anos foi demais. Tanto pelo número de aeronaves, quanto pelo tamanho delas. A explosão do seu uso é, em parte, também resultado da ação inconseqüente das autoridades. O fluxo pode e deve ser racionalizado, medida anunciada agora pelo governo. E há muitas outras providências que podem ser tomadas para aliviar os problemas. Os investimentos devem ser feitos e são mais urgentes nos aeroportos de maior fluxo.

Para muita gente, essas medidas chegaram tarde demais. Mas uma mudança de atitude do governo é fundamental. Mostra que ele saiu do anterior estado de letargia e começou a tomar decisões na linha correta. O gesto indigente de Marco Aurélio Garcia revela convicções erradas. E esse erro deve ser corrigido. Não é uma disputa política, é uma emergência nacional.