Título: A ilha de Marambaia
Autor: Rosenfield, Denis Lerrer
Fonte: O Globo, 23/07/2007, Opinião, p. 7

A invenção de quilombolas está se tornando uma perigosa prática nacional. Tanto mais perigosa que encontra respaldo jurídico num decreto presidencial de 2003 e apoio político-administrativo em órgãos como o Incra, do Ministério do Desenvolvimento Agrário, e a Fundação Palmares, do Ministério da Cultura. Ora, um decreto presidencial, ato administrativo do Poder Executivo, não poderia regulamentar um artigo constitucional, o 68, que dispõe sobre os quilombos, requerendo uma lei complementar, cuja aprovação é atribuição do Poder Legislativo.

O decreto estipula a autodefinição enquanto critério da negritude e a conseqüente auto-atribuição de terras e propriedades rurais e urbanas como condições de desapropriação. O arbítrio da autodefinição e da auto-atribuição torna-se, então, a regra de ações então ditas quilombolas, não sendo necessário, por exemplo, que essas pessoas morem ou residam nesses locais. Ou seja, não é necessária a existência de quilombos, como estipula a Constituição.

A Ilha de Marambaia, no Rio de Janeiro, é uma base dos Fuzileiros Navais. Um local esplêndido. A União a comprou por "95 contos de réis" em 1905 e a transferiu para a Marinha em 1906. O seu título de propriedade remonta à fazenda do Comendador Breves, tudo estando devidamente documentado. Em função de vicissitudes históricas do Estado brasileiro, em 1938 lá funcionou uma escola de pesca, desativada em 1971. Em 1981 foi instalado o Centro de Adestramento dos Fuzileiros Navais. Está aos seus cuidados a conservação da ilha, que em nada interfere no que diz respeito às suas atividades propriamente militares. Trata-se de uma magnífica reserva ecológica, que vem sendo cuidadosamente preservada pela Marinha. Universidades lá realizam pesquisas. É quase um milagre que essa conservação tenha sido garantida, haja vista a destruição ambiental ocorrida em outras ilhas ao redor.

Ora, nem milagres parecem resistir à arbitrariedade. Um grupo orientado por uma ONG, cuja direção é formada por pastores e bispos metodistas, anglicanos e presbiterianos, fomenta e reclama essa área como "quilombola", tendo como respaldo o Decreto Presidencial 4.887. Habitam a ilha, além dos fuzileiros, 106 famílias, que vivem basicamente de pesca, cesta básica, Bolsa Família e aposentadorias. Até a intervenção dessa ONG, não havia conflitos "raciais" na ilha. Aliás, sua população é completamente miscigenada, segundo diversos matizes, vivendo em pequenas áreas costeiras. As suas moradias têm cerca ao redor, configurando, assim, as suas posses. Nada mais simples do ponto de vista social do que conceder direitos reais de uso a essas famílias em suas áreas respectivas. Aliás, essa é a proposta da própria Marinha.

Ora, o que quer essa ONG com o apoio da Fundação Palmares e o Incra? Nada mais do que 16.000.000 de metros quadrados para 106 famílias, tornando-as "proprietárias" de praticamente metade da ilha e de quase toda a sua baía. O que pretendem realmente? Tomar posse de paredes rochosas e da mata nativa? Ou talvez, sob o belo nome de "turismo étnico", dar início à especulação imobiliária? O que está realmente por trás de tudo isso? Há laudos ambientais segundo os quais não é aconselhável a ocupação humana dessa área de preservação, objeto precisamente dessa ação "racial".

Imaginem que, se nem a Marinha é respeitada, o que poderia bem acontecer com os pequenos proprietários rurais e urbanos, confrontados com "reivindicações raciais" dessa espécie. Quem os defenderia? Há todo um símbolo aqui em jogo. Se a Ilha de Marambaia for desapropriada, a mensagem passada é a seguinte: se nem as Forças Armadas resistem a nós, o caminho está aberto a novas ações que podem reformatar completamente as relações de propriedade e, mesmo, partes inteiras do território nacional. Um trabalho preliminar, neste sentido, já foi feito pela Universidade de Brasília, que construiu um "mapa racial" brasileiro, que serve de orientação para as ações ditas quilombolas. Unidades da Federação seriam amputadas de uma parte considerável de seu território, não importando a existência de títulos de propriedade privados ou públicos, nem a própria existência de cidades. Surge uma nova legalidade, a legalidade do arbítrio, passando a legislar sobre tudo.

DENIS LERRER ROSENFIELD é professor de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.