Título: Tragédias e transtornos: a crônica do governo sobre os dez meses de crise
Autor: Beck, Martha e Gripp, Alan
Fonte: O Globo, 22/07/2007, O País, p. 3

Documentos oficiais contam a história do "apagão gerencial" no setor aéreo.

Na manhã de terça feira (17), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva vestiu um elegante terno azul marinho e foi à reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, no Palácio do Planalto. Durante 20 minutos, Lula falou sobre a "maturidade" dos governantes para uma platéia repleta de empresários e sindicalistas. Ali deu sua receita de gestão: "Em determinados cargos, a gente não diz aquilo que pensa nunca; a gente faz quando pode e, se não pode, a gente deixa como está para ver como é que fica".

Documentos do próprio governo sugerem que há um pouco de cada um desses ingredientes no colapso da aviação civil e da administração dos aeroportos do país - exposto nos últimos dez meses por tragédias que resultaram em mais de três centenas de mortes.

Guardados em 19 órgãos federais, na Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), no Tribunal de Contas da União (TCU) e nas duas CPIs em funcionamento no Congresso, os papéis contam a história de uma grande confusão gerencial, que prossegue.

O TCU tentou resumir esse quadro caótico em uma frase de 45 palavras, no seu último relatório setorial: "O chamado "apagão aéreo" nada mais é do que uma sucessão de equívocos quanto aos cortes nas propostas orçamentárias; contingenciamento de recursos para o setor; indolência em relação às necessidades de expansão e modernização do sistema e quanto à ineficiente política de alocação de recursos humanos".

Verbas cortadas, apesar dos alertas

O tráfego aéreo brasileiro cresce a uma velocidade recorde. O número de passageiros subiu 40% em relação a 2003. Por quatro anos seguidos, o órgão da Aeronáutica responsável pela infra-estrutura de segurança (Departamento de Controle do Espaço Aéreo) fez advertências escritas sobre a "situação emergencial", "efeitos danosos" e os "riscos" decorrentes dos cortes nos investimentos em sistemas de proteção ao vôo. No final de 1995, chegou a prever "atrasos e congestionamentos nos principais aeroportos", "maior tempo de espera entre pousos e decolagens" e "diminuição no grau de confiabilidade e oportunidade na prestação de informações aeronáutica e meteorológicas".

O governo, no entanto, impôs sucessivos e drásticos cortes no orçamento de segurança aérea. As verbas liberadas nos últimos quatro anos foram reduzidas quase à metade. Em 2002, o país investiu R$823 milhões no sistema de segurança aérea. A partir de 2003, o orçamento caiu para a média de R$458 milhões anuais .

Não faltaram alertas. Lula estava há 300 dias no Palácio do Planalto quando seu ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, recebeu a primeira advertência escrita: do Conselho Nacional de Aviação Civil (Conac), sobre a necessidade de recursos para a prevenção de crises como a atual. O ofício, com data de 10 de outubro, era assinado pelo presidente do Conselho, o então ministro da Defesa, José Viegas.

Na época, havia uma disputa de poder político. A Casa Civil, com representação em 53 câmaras e conselhos governamentais, dedicava esforços na construção do órgão regulador, na Agência Nacional de Aviação Civil, na distância da Defesa e nos comandos militares.

Passaram-se dois anos até o Conselho receber uma resposta do Planalto. Ela chegou depois da criação da Anac, cujos cargos principais foram loteados entre PT, PTB e PMDB. Durante reunião de segundo escalão ministerial, em 28 de julho de 2005, o enviado da Casa Civil foi definitivo: "A política de contingenciamento de recursos não prevê exceção", registra documento do Ministério da Defesa. Anulado na prática, o Conselho só voltou a se reunir três anos depois, em maio passado e na última sexta-feira.

A morte de 154 pessoas em acidente com um avião da Gol, em setembro do ano passado, expôs o colapso na administração da aviação civil e dos aeroportos.

Como 19 órgãos setoriais, um conselho e uma agência reguladora demonstravam incapacidade até na comunicação interna, o governo resolveu improvisar. Garantida a reeleição, Lula anunciou um grupo de trabalho interministerial para encontrar "soluções". Em 28 dias, produziu-se um documento com 13 sugestões. Morreram no papel, nada foi feito - de acordo com levantamento das CPIs sobre o apagão aéreo mantidas pelo Senado e pela Câmara.

Sob o clima de comoção pela morte de mais de duas centenas de pessoas no acidente com o avião da TAM, o presidente voltou a anunciar "providências" e "compromisso" com a solução da crise. O governo já anunciara o fim do apagão pelo menos sete vezes, nos últimos dez meses, em recorrentes exercícios de substituição de ações por palavras.

Até agora, o país não dispõe de um diagnóstico da crise ou de um plano de investimentos na infra-estrutura de segurança de vôo, confirmam documentos da Anac entregues há três semanas à CPI do Senado. Neles, a agência informa que isso será possível "em breve".