Título: Os dois Brasis da Lei Rouanet
Autor: Franco, Bernardo Melo
Fonte: O Globo, 22/07/2007, Segundo Caderno, p. 1

MinC recebe críticas e mostra fragilidade ao tentar minimizar a desigualdade na distribuição de recursos, 80% deles concentrados no Sudeste

Há 24 anos no front cultural pernambucano, a atriz Paula de Renor, diretora de um teatro na zona portuária do Recife, desistiu de combater a muralha que separa produtores de fora do eixo Rio-São Paulo dos recursos da Lei Rouanet. Depois de penar para conseguir R$80 mil dos Correios para montar uma peça em 2005, ela decidiu concentrar os esforços em mecanismos locais de patrocínio. A justificativa repete a queixa de milhares de artistas país afora: desde que foi criado, no governo Collor, o modelo federal de incentivos fiscais à cultura privilegia os estados do Sudeste. No ano passado, a região concentrou 79,6% dos R$824 milhões obtidos pela lei.

- Aqui no Nordeste, pouca gente ainda conta com a Rouanet. As grandes empresas estão no Sudeste, e os produtores não têm recursos nem para viajar e vender seus projetos. No modelo atual, não temos a menor chance de disputar o dinheiro com os institutos ligados a grandes bancos, por exemplo - protesta Paula.

O coro contra a divisão desigual do bolo ganhou força há um mês, com o relatório anual do Tribunal de Contas da União sobre os gastos federais em 2006. No documento, o ministro Ubiratan Aguiar diz que a concentração dos recursos descaracteriza a função da lei, que deveria democratizar o acesso à cultura. Ele acusa o Ministério da Cultura de se abster do controle dos patrocínios e ignorar o artigo 3 da Constituição, que obriga o governo a combater as desigualdades sociais e regionais. Para o ministro, a expressão mecenato, impressa nos documentos oficiais, não se aplica mais ao modelo de financiamento da cultura.

- A renúncia fiscal é um imposto que se veste com outra roupa. A aplicação desse dinheiro tem que seguir o que determina a Constituição - afirma o cearense Aguiar, compositor e poeta nas horas vagas. - Se morasse no Sudeste, Patativa do Assaré teria ido à ONU!

Embora sempre tenha figurado entre as promessas de campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a partilha das verbas para a cultura não evoluiu um milímetro nos últimos quatro anos. Pelo contrário: em 2002, quando o petista foi eleito, a participação do Sudeste era de 78,04%, pouco abaixo da atual. Os números mostram que as primeiras mudanças na Rouanet, anunciadas pelo governo no início do ano passado, não surtiram o efeito desejado.

Antigos vícios estão na mira do MinC

Alvejado pelo relatório do TCU, o Ministério da Cultura decidiu apressar uma nova reforma para reduzir as distorções do modelo, que deve ser apresentada ao Planalto nos próximos meses. Além da concentração dos recursos, estão na mira antigos vícios como a distribuição generalizada de patrocínios sem abertura de edital e o excesso de projetos beneficiados pela renúncia integral - em que a empresa é autorizada a deduzir 100% do investimento no Imposto de Renda. Segundo o secretário executivo Juca Ferreira, que responde pela pasta nas férias do ministro Gilberto Gil, uma das propostas é obrigar as empresas que investem nos grandes centros econômicos a financiar outros projetos em regiões mais pobres do país.

- Os interesses da iniciativa privada atendem à lógica do mercado. Hoje não temos instrumentos para reverter isso - admite.

Como diria o filósofo Garrincha, falta combinar com os russos. Do outro lado do balcão, representantes de institutos privados reclamam da falta de clareza nos objetivos do governo. O superintendente do Itaú Cultural, Eduardo Saron, diz que a escassez de recursos do MinC, que aplica a maior parte do orçamento para financiar a própria máquina, leva o governo a basear suas políticas públicas no sistema de incentivos fiscais.

- A política nacional para a cultura não é clara, e os institutos ficam sem saber onde mirar com mais força. Isso dificulta a nossa seleção de projetos e afasta outros possíveis investidores - afirma.

Até o fim do ano, o Itaú Cultural espera aplicar um volume recorde de recursos da Lei Rouanet: R$34 milhões. Para o superintendente do instituto, que já usa editais em parte de seus projetos, o discurso contra a concentração dos recursos ignora investimentos em áreas pobres dos estados mais abastados.

- Há outras formas de se desconcentrar a aplicação do dinheiro. Patrocinar um projeto na periferia das grandes cidades pode ser culturalmente mais relevante do que levá-lo para o Nordeste - afirma.

Além disso, alguns projetos gestados em São Paulo ou no Rio correm o Brasil em turnês, diz Saron, exemplificando outra possível distorção no quadro que mostra a concentração dos recursos. O argumento é contestado pelo ministro Ubiratan Aguiar:

- Essa via precisa ser de mão dupla. Um produtor cultural da Amazônia não tem a mesma facilidade para levar um espetáculo de folclore a outras regiões do país.

O relatório do TCU apontou um problema ainda mais grave na outra ponta do modelo de incentivos fiscais. O texto classifica de "alarmante" a falta de fiscalização sobre o uso do dinheiro captado. No ritmo atual, o governo levaria 12 anos para analisar quase duas mil prestações de contas que, no fim de 2005, se acumulavam nos gabinetes do MinC. O governo ainda tenta recuperar recursos dados à atriz Norma Bengell, indiciada pela Polícia Federal por suposto desvio do orçamento do filme "O guarani", e ao ator Guilherme Fontes, que captou R$12,5 milhões em 1996 e nunca entregou o filme "Chatô". Juca Ferreira admite que o controle dos gastos, feito por um grupo de 18 servidores em greve desde maio, continuará a ser o ponto fraco do sistema.

- Nossa estrutura é precária. Em 2006, o MinC fez o primeiro concurso público em 23 anos, e mais da metade dos servidores já foi embora porque os salários são muito baixos. Não tenho mais como esticar a corda, estamos no limite - afirma.

Secretário espera nova saraivada

Com parte do projeto de mudanças na Rouanet já na gaveta, o secretário executivo diz que o MinC está pronto para enfrentar uma nova saraivada de críticas, na mesma proporção das que sofreu quando tentou impor a polêmica contrapartida social como condição para distribuir recursos públicos. Apesar dos problemas, argumenta que projetos como a publicação de livros de arte de custo extorsivo e tiragem limitada já não obtêm o aval do governo para captar patrocínios. Ferreira diz que o governo ainda não pode fixar data para a apresentação da proposta, que ainda precisa ser submetida à sociedade e ao aval da Casa Civil. Na fila para voltar a disputar os recursos da Lei Rouanet, a produtora Paula de Renor atribui a demora aos grupos que podem ter os interesses contrariados:

- Ninguém agüenta mais discutir essas mudanças. O governo sabe o que precisa fazer para melhorar o modelo e democratizar a distribuição dos patrocínios. O que falta é vontade política.