Título: Bons governos salvam vidas
Autor: Soares, Gláucio Ary Dillon
Fonte: O Globo, 27/07/2007, Opinião, p. 7

Há duas perspectivas a respeito de acidentes, como o recente com o avião da TAM em Congonhas. Uma o vê como uma fatalidade, inevitável, que tinha que acontecer. Se os acidentes são assim, então, não há nada a fazer. Aconteceriam aleatoriamente, sem relação com nada. Mas não são fatalidades, nem têm que acontecer. São evitáveis. As taxas de acidentes são mais altas em algumas regiões do mundo do que em outras, em alguns países do que em outros, em algumas companhias do que em outras. Elas são mais baixas nos países mais desenvolvidos política e civicamente do que nos demais. As grandes desigualdades entre as taxas de acidentes e de mortos mostram que não são fenômenos aleatórios nem obras do acaso. Homens e governos contribuem para aumentar ou reduzir o risco de acidentes.

Comecemos com as companhias aéreas. Elas contam: a probabilidade de morrer num vôo das 25 melhores companhias é de um em 6,3 milhões, ao passo que num vôo das 25 piores é de um em 543 mil. Voar numa das piores companhias aumenta seu risco de morte em mais de onze vezes (11,6, para ser mais exato). Esses dados tiveram como referência o database da PlaneCrashInfo de 1981 a 2004.

Infelizmente, a TAM não está nada bem no quesito segurança de vôo. Numa comparação de 87 companhias, de 1986 a 2006, a TAM está em 70º lugar. Quem fecha a lista, em posições nada invejáveis, são duas de países comunistas, a China Airlines e a Cubana de Aviación. Por esses critérios, são as piores do mundo. As mais seguras são americanas, australianas, neozelandesas, japonesas, algumas européias e a El Al.

As grandes diferenças entre países e regiões do mundo mostram uma relação entre desenvolvimento econômico e político e taxa de acidentes - quanto mais desenvolvido um país, quanto mais livre politicamente, quanto mais capacitados os membros de seus governos, menor a taxa de acidentes. Não é de surpreender que as piores taxas do mundo sejam as da África, do Oriente Médio e da América Latina. Todas as companhias da África e do Oriente Médio (exceto El Al) estão depois da 50ª posição no ranking. Também não surpreende que, na Europa, duas das piores companhias sejam a Turkish Airlines (Turquia) e a Aeroflot (Rússia), e que as companhias dos países da ex-URSS estejam em péssima colocação em segurança de vôo.

Décadas de irresponsabilidade cívica aumentaram a probabilidade de um acidente. Um dos acidentes com um Airbus 310 foi causado pela extrema irresponsabilidade do capitão, Yaroslav Kudrinsky, que deixou seu filho, de 15 anos, pilotar o avião, matando 75 passageiros e a tripulação. O ministro dos Transportes, Vitali Yefimov, reconheceu que a segurança de vôo na Rússia era "muito fraca". Uma atitude bem diferente da tomada por militares brasileiros, cuja negação sistemática e autodesmoralizante de que o setor teria problemas já foi ridicularizada pelo jornal "La Nación", que afirmou: "Infraero é um organismo controlado por autoridades militares que não se submetiam ao controle normal do Estado, oferecendo sempre como resposta que o sistema de tráfego aéreo brasileiro "é dos melhores do mundo"".

Políticas de segurança reduzem acidentes e outras mortes violentas, mas elas dependem de governos. No Distrito Federal, o "Paz no Trânsito", apoiado pelo governo Cristovam Buarque, então no PT, reduziu a taxa de mortes por dez mil veículos à metade, em apenas quatro anos. Um recorde. O programa incluía vários especialistas. Em São Paulo, o governo estadual (PSDB) reduziu os homicídios à metade desde 1999, o que foi conseguido com a dramática elevação do nível técnico e da competência da polícia e a redução da impunidade; em Diadema, o governo do PT usou um pacote de medidas fundamentadas no conhecimento internacional disponível, e reduziu os homicídios e a violência doméstica. Em Bogotá, Antanás Mockus, ex-reitor da Universidade Nacional, levou uma equipe de peritos para seu governo e conseguiu uma redução simultânea nas mortes no trânsito e por homicídio que hoje é paradigmática. Em todas as áreas há muitas vidas a serem salvas, mas são requeridos conhecimento especializado e vontade política. A própria Rússia conseguiu deter a onda de acidentes no setor aéreo.

Os dados da própria Anac mostram uma redução no número de acidentes no Brasil, de 400 na média, entre 1979 e 1982, a 50, em 1999. A partir de 2000, a tendência à redução desaparece. Usando taxas de mortos, 2006 e 2007 foram anos trágicos. Regredimos.

Políticas competentes salvam vidas. Air Safe, respondendo sobre quais as companhias mais seguras, afirma que o indicador mais importante da segurança de uma companhia é como ela é regulada pela autoridade da aviação civil. Quem deveria fazer esse trabalho no Brasil? A Anac foi criada para isso. Porém, a Anac não é uma agência técnica e, sim, um cabide de empregos, onde se penduram políticos em cargos que deveriam ser ocupados por técnicos de nível internacional. A incompetência de muitos dos seus diretores e sua omissão são parte de desastres anunciados. Em 16 de dezembro de 2005, Políbio Braga dizia, a respeito do presidente da Anac, Milton Zuanazzi, que "a maior experiência de Zuanazzi na área é a de passageiro de vôos de carreira". Foi do grupo do ex-marido da poderosa Dilma Rousseff e, por isso, nomeado. Provinha da Secretaria de Turismo do Rio Grande do Sul. Quem o nomeou?

Lula.

Denise Abreu também é diretora da Anac. É advogada criminal, apadrinhada pelo ex-ministro José Dirceu. Trabalhou com delinqüentes. Competência prévia na aviação civil e segurança de vôo? Nenhuma. Quem a nomeou?

Lula.

Leur Lomanto, outro diretor da Anac, também é advogado, e sua principal qualificação é ter sido deputado federal por vários partidos de 1975 a 2003. Experiência técnica em segurança de vôo e aviação civil? Zero. Quem o nomeou?

Lula.

Preciso dizer mais?

Preciso. Preciso ressaltar a luta do deputado Júlio Redecker (PSDB-RS), expressa em discurso feito no dia 26 de abril. O deputado exaltava a decisão do STF contra os que tentaram impedir a instalação da CPI do Apagão Aéreo. A decisão do STF foi unânime. Meses antes, Redecker afirmava que o acidente da Gol começara muito antes, quando o governo Lula contingenciou os recursos para a segurança dos vôos e dos aeroportos. Ironicamente, menos de três meses depois, o deputado Júlio Redecker morreu na catástrofe evitável da TAM.

Bons governos salvam vidas; maus governos contribuem para a morte de seus cidadãos. O leitor decidirá se os mortos em Congonhas foram fatalidades inevitáveis ou se poderiam ter sido salvos com governo e agências competentes. A começar pelo presidente da República.

GLÁUCIO ARY DILLON SOARES é sociólogo. E-mail: soares.glaucio@gmail.com.