Título: Eu me identifico com a Eva do punho cerrado
Autor: Gualdoni, Fernando e Prado, Luis
Fonte: O Globo, 27/07/2007, O Mundo, p. 31
Líder nas pesquisas para a presidência argentina, Cristina Kirchner nega projeto de alternância no poder com o marido.
MADRI. Ela é chamada CK na Argentina, no melhor estilo americano. Cristina Fernández de Kirchner, candidata peronista à Presidência argentina e mulher do atual presidente, Néstor Kirchner, gosta de Hillary Clinton, mas também se identifica com a Evita "do punho cerrado". CK, de 54 anos bem-conservados, nega o projeto de alternância no poder com o marido e defende o presidente venezuelano, Hugo Chávez. O próximo 28 de outubro será a prova de fogo da atual senadora Kirchner. As pesquisas dão entre 40% e 50% de votos, bem à frente dos rivais. Nascida en La Plata, capital da província de Buenos Aires, CK tem uma personalidade forte, é bastante loquaz e tem resposta para tudo.
Fernando Gualdoni e Luis Prado
Quando a senhora decidiu se candidatar à Presidência?
CRISTINA FERNÁNDEZ DE KIRCHNER: Não faço política por ser mulher do presidente da República. Quando me incorporei à política, nós mulheres estávamos par a par com os homens. Não éramos políticos. Éramos militantes. É algo que, talvez, não seja compreendido pela pós-modernidade. Não houve um momento especial para tomar a decisão. É uma decisão que se medita e se analisa de acordo com cada situação. A decisão está vinculada à marcha do país, mas em nenhum momento à permanência em um posto. Não me interessa ocupar um espaço político para relações públicas... Faço política se posso transformar a realidade. Se não mudo a realidade da qual não gosto, não estou fazendo política, estou fazendo ideologia, mas sem levá-la à prática.
Antes da senhora duas ex-mulheres de Perón, Evita e Isabelita (María Estela Martínez), foram essenciais na História argentina. Como lidar com esse legado?
CRISTINA: As duas personagens revelaram o que a Argentina e o peronismo são capazes de produzir. Por isso sempre digo que o peronismo é o fiel reflexo de meu país, porque é capaz de produzir personagens sublimes como Evita e outros medíocres como Isabelita. Digo medíocre porque jogar sobre Isabelita tudo o que ocorreu depois (referindo-se à ditadura militar de 1976 a 1983) é um reducionismo, uma simplificação. A Eva com a qual me identifico é a Eva Perón do punho cerrado em frente ao microfone. Não com a Eva milagrosa, com a qual é a minha mãe que se identifica.
O que fará seu marido após o mandato?
CRISTINA: É um homem político, comprometido com o mundo que o rodeia e que pode viver muito comodamente sem os atributos formais do poder. Kirchner é transparente, se mostra tal como é, pode gostar ou não, mas é um homem absolutamente previsível, todo mundo sabe como reage ante certas coisas. Ele vai continuar fazendo política.
A senhora descarta a possibilidade de que você e seu marido se alternem na Presidência?
CRISTINA: Esse é o título de um filme de ficção científica. Não se pode programar a política. Por acaso vocês sabiam em 1985 que o muro ia cair em 1989? Cogitar essa possibilidade é um insulto à inteligência dos eleitores.
Não é tão descabido se a senhora considerar, por exemplo, que se Hillary Clinton vence as próximas eleições nos EUA, o país terá estado nas mãos de duas famílias, os Bush e os Clinton, durante o último quarto de século...
CRISTINA: É preciso ter um olhar crítico sobre questões de família, mas seria necessário perguntar: "Em casa, como andamos?"
Como será sua relação com o presidente da Venezuela, Hugo Chávez?
CRISTINA: No Mercosul há uma cláusula de salvaguarda da democracia. As últimas eleições na Venezuela, nas quais Chávez foi amplamente vencedor, foram supervisionadas por organismos internacionais.
A senhora não teme que os últimos escândalos de corrupção lhe tirem votos (há dois ministros e uma secretária de Estado sob investigação pela Justiça)?
CRISTINA: Parece-me que o governo deu uma resposta mais que clara a esse respeito.