Título: Renunciar nesta hora é um ato de covardia
Autor: Doca, Geralda e Fadul, Sergio
Fonte: O Globo, 29/07/2007, O País, p. 14

Presidente da Anac afirma que seu cargo não é político e que a lei que criou as agências tem que ser cumprida.

Apontado como um dos vilões do caos que atinge o setor aéreo há mais de dez meses, marcado por duas tragédias que mataram mais de 350 pessoas, o presidente da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), Milton Zuanazzi, afirma que renunciar ao cargo seria um ato de covardia que não cometerá. No mesmo momento em que o novo ministro da Defesa, Nelson Jobim, recebia o cargo de Waldir Pires, Zuanazzi dava entrevista ao GLOBO. "O senhor não vai à cerimônia do ministro Jobim?", perguntaram os repórteres para saber se a entrevista teria de ser rápida. "Não, acho mais importante essa conversa para tentar esclarecer as coisas", respondeu. Zuanazzi admite que a agência que preside não tem força de atuação, mas afirma que a culpa não é das pessoas que estão lá. Segundo ele, todas as agências reguladoras foram criadas dentro de um marco regulatório para o setor que deveriam supervisionar. A Anac, não. Durante a entrevista, Zuanazzi reclamou de ardência no estômago e tomou duas xícaras de chá de boldo. Geralda Doca, Sergio Fadul e Francisco Leali

A cabeça do senhor está a prêmio?

MILTON ZUANAZZI: Quem é que premia uma cabeça? Só pode premiar uma cabeça a lei, não pode ser um discurso.

O senhor já pensou em renunciar ao cargo?

ZUANAZZI: Renunciar nesta hora é um ato de covardia. Covardia com o povo brasileiro porque nós, mais do que ninguém, somos sabedores das soluções que podemos ter para o problema aéreo e também por estarmos entregando a alguém que não tenha essas soluções. É um ato de covardia com a gente mesmo. Eu não sou covarde comigo e não serei com o povo brasileiro. Não sou apegado a cargos, e o que me mantém na Anac não é esse apego, mas a responsabilidade. Seria irresponsabilidade eu simplesmente virar as costas e ir embora, na hora em que o país mais precisa de mim e do nosso trabalho.

Não foi essa convicção que fez o ex-ministro Waldir Pires resistir, e ele acabou se desgastando ainda mais?

ZUANAZZI: O cargo do ministro é político, não é o nosso caso. Somos um órgão de Estado e, assim sendo, qualquer ato de renúncia ou é pessoal ou por improbidade administrativa. Se eu achasse que não devia mais ficar no cargo, não tomaria essa atitude porque seria uma covardia. A agência não quer ter papel político, mas também não quer se subjugar politicamente. Ela quer ter um papel de agência e responder por isso. Se a lei brasileira montada para as agências foi essa, ela tem que ser cumprida, inclusive nossos mandatos.

A diretoria da Anac está fechada em continuar e não renunciar?

ZUANAZZI: Estamos fechados. Há uma unidade significativa na diretoria. Os diretores estão com a mesma disposição de ser parte da solução, e não do problema.

E se alterarem a legislação para mudar a diretoria das agências, elas se descaracterizam?

ZUANAZZI: É melhor ela não existir se isso for possível. A finalidade maior das agências é dar estabilidade ao ambiente regulatório, ao investimento privado que recebeu a concessão pública. Quando o ambiente de concessão não é claro e fica sujeito a inferências políticas ou mudanças de humor, o investidor foge porque teme que essa mudança ocorra no meio do seu investimento.

Esses princípios não podem servir como uma estabilidade, independentemente da qualidade do trabalho?

ZUANAZZI: Sim. Por isso o marco regulatório é fundamental. É preciso ter um marco atualizado permanentemente, dando esses limites para você tirar a possibilidade daquele diretor daquela diretoria tomar medidas por sua conta e risco. O marco legal deve fixar os limites.

O ministro Jobim deixou claro que quem manda no setor aéreo é ele. A Anac perdeu força?

ZUANAZZI: Se foi a agência que centralizou o setor em algum momento, estava errada e fez isso por outros vazios de poder. Quem coordena a política é o governo, é o ministro da Defesa, ele é o presidente do Conac (Conselho de Aviação Civil) e, através do Conac, delibera para a agência suas diretrizes políticas. Esse é o instrumento legal que está aí. O que a Anac mais deseja é que fique restrita aos seus poderes regulador e fiscalizador, que não tenha nenhum papel político, nenhum papel de elaboração de políticas, de coordenação política.

Parte do governo avalia que diretores da Anac foram cooptados pelas empresas aéreas...

ZUANAZZI: Gostaria que essa expressão viesse em on, não em off. Gostaria que viesse de alguém, porque, se estão fazendo essa acusação, estão acusando muita gente, inclusive anteriores a nós. Se a Anac multa mais, se diminuiu (o movimento de) Congonhas, o aeroporto mais disputado economicamente neste país, se não foi ela que botou esse número de operações em Congonhas, então essa acusação é muito grave. Ela ultrapassa os limites de quando a Anac foi criada. Tem que me comparar com meu paradigma, não pode me comparar no ar.

A Anac foi o primeiro passo para desmilitarizar o setor de aviação. A iniciativa não deu certo ou o caminho seria aprofundar a desmilitarização?

ZUANAZZI: Não acho relevante desmilitarizar. É relevante que os órgãos tenham centralidade na elaboração de políticas e do ponto de vista da execução. Isso é fundamental. A elaboração de políticas e a coordenação desse processo cabem ao Conac.

O governo foi usado como escudo pelas empresas para esconder suas deficiências?

ZUANAZZI: Isso vai acabar. Não é justo termos espaçamentos fora do padrão e nem é justo a empresa se esconder de um problema seu, dizendo que é de outro. Esse ambiente de "não é comigo" tem de acabar. E, quando for responsabilidade da Anac, quero que isso seja dito, quero vir a público e dizer foi erro nosso.

O ministro Jobim disse que, na hipótese de mudanças na Anac, preferiria uma equipe técnica. Da atual diretoria, apenas dois integrantes são do ramo e o senhor não é um deles. Conhecimento técnico é dispensável?

ZUANAZZI: Isso é um desvio do foco. O fato de uma agência ser eclética não é ruim, é bom. Como é um órgão colegiado e a sua decisão é última, não é bom que todos seja aviadores. É bom que tenha uma procuradora pública (Denise Abreu), um parlamentar (Leur Lomanto), alguém do turismo (ele mesmo), um aviador (Jorge Velozo), um catedrático (Josef Barat). Vejo o ecletismo da diretoria como algo positivo. Essa crítica só seria plausível se tomássemos decisões sem consultar nossa área técnica. E nossa área técnica não pode ser acusada de não ter conhecimento porque é a mesma do DAC. Os superintendentes são engenheiros do ITA, têm cursos nos EUA e no Japão. Diga uma decisão da Anac em que ela contrariou uma expressamente um parecer técnico. A crítica é tentativa de politizar.

O questionamento vale quando o presidente nomeia um político para gerir a crise aérea no Ministério da Defesa?

ZUANAZZI: Gerir a crise a aérea precisa de gente que tenha competência, bom senso, discernimento e capacidade de gerenciamento. A formação da pessoa é absolutamente irrelevante, porque estamos cheios de técnicos competentes. Já tivemos ministro da Fazenda médico e ministro da Saúde economista, e nenhum foi mal. No caso das agências, ainda tem um intermediador: a indicação parte do presidente da República e depois somos sabatinados no Senado.

Para a Anac, qual é o diagnóstico da crise?

ZUANAZZI: Temos uma média histórica na casa de 15% de atrasos e de 10% a 12% de cancelamentos de vôos no Brasil, média que não é aceitável e sempre existiu. O chamado apagão ampliou para algo em torno de 23% a 25% de atrasos com mais de uma hora e para algo em torno de 15% de cancelamentos. Antes do acidente com o avião da Gol, já tínhamos atrasos por vários fatores que continuam até hoje, com meteorologia e decorrentes da falta de equipamentos. Essa média aumentou porque passou a haver um movimento reivindicatório, e a culpa não é meramente dos controladores, porque havia outros problemas.

As pessoas nos aeroportos querem que as autoridades resolvam os problemas...

ZUANAZZI: Não tiro o direito das pessoas de fazerem essa crítica e elas fazem a mim pessoalmente. Não viajo de FAB, viajo de avião de carreira, e já estive em muitos atrasos, inclusive com mais de quatro horas.

Não se irritou com o atraso?

ZUANAZZI: Evidente. Entendo e dou razão aos usuários quando nos cobram qualquer atraso, jogam para a Anac a responsabilidade de multar as empresas, e é correto. Porém, quando a Anac vai multar, ela se depara com o instrumento legal. Ela foi criada sem uma lei atualizada, outras agências foram criadas com uma lei geral junto. A nossa com uma lei de 1986, depois vieram a Constituição Federal, o Código de Defesa do Consumidor, a revisão do Código do Processo Civil, ou seja, deixaram o CBA (Código Brasileiro de Aeronáutica) defasado no tempo e em conflitos permanentes. Do ponto de vista do CBA, não posso obrigar a empresa a prestar assistência ao usuário se o vôo não atrasar mais de quatro horas. Se proceder de outra forma, a empresa entra na Justiça e ganha. O marco legal da Anac é capenga.

Congonhas é o principal foco de caos do sistema?

ZUANAZZI: O acidente com o avião da TAM não pode ser relacionado com os problemas que enfrentávamos antes. O fato de ter movimento em Congonhas não justifica a tragédia. De 2000 para cá ele está esgotado, ou seja, está determinado o número de movimentos por hora, levando-se em conta todos os aspectos de infra-estrutura. Nunca negamos que os terminais de São Paulo eram um problema e que não havia solução de curto prazo. A Anac vinha alertando sobre o problema há muito tempo. Não vamos retirar nossa responsabilidade, mas, desde que a Anac surgiu, em 2006, veio diminuindo a operação em Congonhas. O aeroporto estava com 48 movimentos/hora e diminuímos para 44.

Três dias após a tragédia, o senhor e outros diretores da Anac receberam medalhas da Aeronáutica. O senhor merecia ser condecorado?

ZUANAZZI: Olha a deturpação que se fez, receberam a medalha 208 pessoas, entre elas os legistas do acidente da Gol, o pessoal do Para-Sar, do Exército, o Batalhão de Selva. Diante da tragédia, perguntei ao brigadeiro Juniti Saito se não era possível adiar e ele respondeu que a solenidade acontece desde 1956. Foi com bandeira a meio-mastro, não houve discursos e nem o hino foi tocado. Houve um minuto de silêncio, todo o rito foi em honra às vítimas.

Uma auditoria externa é recomendável para reforçar a credibilidade do sistema?

ZUANAZZI: Se for da Oaci (Organização Internacional da Aviação Civil) seria muito bem-vinda. Não podemos é abrir mão dos princípios de soberania.