Título: 400 grampos na capital
Autor: Ferro, Celso
Fonte: Correio Braziliense, 10/03/2009, Cidades, p. 24

Prestes a se aposentar, um dos homens fortes da Polícia Civil do DF faz defesa das interceptações telefônicas

Temido e respeitado. Misterioso e controverso. Mas a melhor definição do delegado Celso Ferro vem dele mesmo: ¿Uma peça difícil de mexer¿ na estrutura da Polícia Civil do DF. Isso por dominar, controlar e guardar um arsenal de informações sigilosas que incomodam desde o tráfico organizado até autoridades nas mais diversas esferas do poder local. Atravessou governos, mas agora ele mesmo fez o movimento no tabuleiro. Decidiu sair do jogo. Esta semana, sai oficialmente a aposentadoria. Na tarde da sexta-feira passada, enquanto terminava de esvaziar gavetas, deu ao Correio a última entrevista exclusiva ainda como chefe do Departamento de Atividades Especiais (Depate).

Ferro foi o homem mais poderoso da polícia nos últimos 10 anos. E, pelas informações que levará consigo, continuará tendo prestígio. Subordinadas a ele havia nada menos que 12 divisões, somando cerca de 400 policiais. Entre elas, a de Combate ao Crime Organizado, a de Crimes contra a Administração Pública e a de Repressão a Sequestros.

Celso Ferro esteve à frente de importantes operações policiais no DF, algumas de projeção nacional. Mas sua marca foi transformar a Polícia Civil da capital na mais bem aparelhada do país. Professor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), especialista em inteligência tecnológica e em interceptações telefônicas, é ferrenho defensor do uso do grampo nas investigações. Trouxe para a capital técnicas israelenses. Afirma que a tendência das interceptações é só aumentar. Hoje, somente a Civil no DF monitora 400 telefones por dia com autorização judicial. A capacidade total é de controlar 1,2 mil linhas. No início da década de 90, não passavam de 30 por dia. ¿A tecnologia está a serviço dos bandidos, então temos de usá-la também para combatê-los¿. O delegado sustenta que as operadoras de telefonia devem sair do processo de interceptação para garantir a segurança nacional. Com 48 anos, 27 de polícia, Ferro deixa a corporação para se dedicar a uma empresa de consultoria na área de inteligência empresarial. Na entrevista, faz sua despedida e abre um pouco da caixa-preta. Por que o senhor está deixando a polícia, já que, apesar de ter tempo para se aposentar, poderia permanecer como outros colegas? Cansou? Uma coisa é certa nessa nossa vida: o fim sempre chega. O que importa é como você sai. Em pé, de cabeça erguida, ou de joelhos, de cabeça abaixada. Sou suspeito para falar, mas saio de cabeça erguida. Não me cansei, mas sinto que já cumpri minha missão. Estou deixando meus discípulos. Chegou a hora de cuidar de interesses pessoais, da empresa de consultoria que vou abrir, cuidar da familia. Mas a polícia não sai da minha cabeça. Não me sinto antigo, mas é bom uma renovação.

Pela experiência e conhecimento que tem numa área tão estratégica como estava, ninguém pediu para o senhor ficar? Sim, ocorreram diversos pedidos, inclusive do governador, mas ele entendeu minha posição.

A sua marca na polícia foi o investimento em tecnologia da informação para sofisticar as investigações, como os projetos Cérebro e Ion. Na prática, como funcionam? O Cérebro é um grande sistema de análise de informações cognitivas, que armazena a memória de investigações. Um grande banco de dados com os recursos computacionais que faz análise contextual do crime. Em vez de investigar de forma isolada, podemos enxergar o crime com maior amplitude. O uso mais recente dessa tecnologia, por exemplo, foi na Operação Aquarela (que investigou desvio de recursos públicos no Banco de Brasília há quase dois anos). No Cérebro, há conteúdo de interceptações telefônicas, informações de quebras de sigilo bancário. Antes, as informações iam embora com o inquérito. Agora, são jogadas no porgrama, que vai criando uma memória.

¿A comunicação está na mão de multinacionais que não querem perder poder. É gravíssimo deixar as interceptações nas mãos delas. Um erro de segurança nacional.¿

E o Projeto Ion muda em que o gerenciamento das escutas telefônicas? Vamos instalar na Polícia Civil até julho. Apresentei a outros órgãos, como Conselho Nacional de Justiça, Anatel, operadores telefônicas, mas sinto resistência de implantá-lo em outras esferas. Já o Ministério Público do DF apoia. Tudo pode ser feito online. O juiz despacha dentro do sistema, aperta o botão e a interceptação será feita automaticamente, sem que a operadora fique sabendo. Não tramita papel algum, eliminamos todo um trâmite de vai e vem de papel. Um processo com certificação digital, comunicação criptografada, controle de acesso, passível de auditoria. O importante é tirar as operadoras desse processo.

Por que é importante tirar as empresas de telefonia nesses casos? A comunicação está na mão de empresas multinacionais, que não querem perder poder de decisão. É gravíssimo deixar as interceptações nas mãos delas. Um erro de segurança nacional. As operadoras têm domínio sobre as informações de todo o governo brasileiro. Há interesse em espionagem em benefício de outros países. A Abin sabe disso. Se eu tiver dinheiro, compro informação, grampeio. É fato. Estamos vulneráveis. Quem tem de dominar isso é o Estado. Como se grampeia, então, se for necessário um diretor de operadora? Ele vai saber quando chegar o mandado judicial.

O senhor é temido por concentrar muita informação sigilosa. Para alguns, é muito poder em poucas mãos. Enfrentou dificuldades, pressões e críticas por isso? Geralmente, quem deve teme. Sim, houve isso. Mas não adiantou. Eu era uma peça difícil de mudar. Sabia muita coisa, né (risos). Mas guardarei para mim. Tenho ética.

¿Nossa legislação está contra a modernidade. Estamos na Era da Pedra. Colocar mais restrições nas interceptações é regredir no tempo.¿

Qual sua opinião sobre as críticas de que há abuso no uso das escutas telefônicas em investigações, que são alvo até de CPI no Congresso? Por parte das polícias não existe abuso. O que há às vezes é a irresponsabilidade de pessoas, desvio de finalidade, mas que em pouco tempo fica evidente e os responsáveis são punidos. Acredito que vai aumentar cada vez mais a necessidade de escutas. Todo mundo que quer praticar um crime precisa se comunicar. As pessoas hoje têm dois, três celulares. A tecnologia está disponível para os bandidos. A grande ferramenta para a polícia é o monitoramento de informações. O que adianta prender os caras depois que eles explodiram um prédio e mataram duas mil pessoas? Seria melhor monitorar as comunicações previamente e evitar que o grupo agisse.

O senhor está falando de terrorismo. Aqui no Brasil não temos isso. Dessa forma, então, todo mundo terá de ser monitorado? Vai chegar a essa época. Não temos ação terrorista no Brasil, mas a violência vai aumentar, o tráfico vai crescer. E a nossa legislação está contra a modernidade, estamos na Era da Pedra. Colocar mais restrições nas interceptações é regredir no tempo. Quanto mais rígida a lei nesse caso, melhor para o crime organizado. Vou ao supermercado pedir uma ficha de um funcionário suspeito de ter ligação com o crime e tenho a informação negada. Eu que sou delegado de polícia não tenho acesso a informações de cadastro de operadora telefônica, mas um estagiário de lá, que ganha R$ 800 tem. Se eu fosse do crime organizado pagava para ele salário de R$ 3 mil e ele me daria as informações.

E o vazamento das escutas para imprensa? É perigoso, mesmo. É preciso um Conselho Gestor das interceptações telefõnicas. Nunca passei gravações para jornais . O Roriz acha que fui eu que passei a escuta da Operação Aquarela (gravação que levou o então senador a renunciar para evitar perda de direitos políticos) e não fui eu. Quando essas coisas vazam é por outras instâncias. A maior prova de minha isenção é que a Operação Aquarela começou aqui, comigo. Recebemos uma carta anônima com denúncias. Abrimos a investigação cujo alvo era o governo do qual participávamos. Não é responsabilidade minha se Roriz caiu nas escutas, não poderia impedir. Avisei apenas ao meu chefe direto, o diretor da Polícia Civil. Quando o caso chegou ao MP, já tínhamos vários volumes de informação.

Quantos telefones estão grampeados hoje no DF, claro, com autorização judicial? Nos anos 90, a capacidade que tínhamos era de 30 por dia. Hoje, com o avanço tecnológico que adquirimos temos condições de monitorar 1,2 mil por dia. Mas estamos com 400 a pedido da Justiça.

¿O Roriz acha que passei a escuta da Operação Aquarela (gravação que levou o então senador a renunciar para evitar perda de direitos políticos) e não fui eu.¿

E no caso do grampo ilegal que fizeram no telefone da procuradora do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas do DF, Cláudia Fernanda, cujas gravações foram espalhadas pela cidade? Abri a investigação. Fiz questão de apresentar e punir os culpados. Eram dois policiais que agiram de forma isolada. Foram punidos e só não apresentei os mandantes porque tiraram o inquérito daqui. Levaram para a Polícia Federal. Garanto que apontaria os mandantes.

A sua equipe fica. O que tem a dizer a ela? Tive a oportunidade de executar projetos ousados, coordenar grandes operações. Deixo minha marca como dirigente, um delegado que nunca chutou um flagrante, que nunca deixou de executar prisões, inclusive de policiais. Agradeço aos que me seguiram nesse caminho. Acho que cheguei no máximo da polícia. Agora não vou dar mais entrevista, não vou ter mais inimigos (risos).

A sua saída tem relação com a decisão do Supremo Tribunal Federal, que julgou inconstitucional o concurso interno da Polícia Civil para delegados de 1991, do qual o senhor participou? Não. E a decisão em momento algum determinou ao GDF reverter a situação, tirar do cargo os delegados. Sempre estive tranquilo quanto a isso.