Título: O bonde das oportunidades na China
Autor: Neves, Luiz Augusto de Castro
Fonte: O Globo, 12/08/2007, Opinião, p. 7

A impressionante ascensão econômica chinesa é um dos fenômenos mais marcantes dos últimos anos, com impacto direto no "redesenho" do cenário internacional contemporâneo.

Os números são superlativos. A taxa média de crescimento foi de 10% ao ano a partir de 1979. O PIB chegou a US$2,6 trilhões no ano passado, e a China já está ultrapassando a Alemanha como terceira maior economia do mundo - isso em termos nominais, porque, em paridade do poder de compra, já é a 2ª maior economia, atrás apenas dos EUA.

O saldo comercial chinês foi de US$177 bilhões em 2006 e deve chegar a US$260 bilhões este ano. E o que está por trás desse fantástico desempenho? Uma hábil combinação de ortodoxia macroeconômica, com baixo déficit público, baixa carga tributária e controle da inflação, abertura considerável mas seletiva da economia e políticas públicas de desenvolvimento de longo prazo. Mais recentemente, acrescente-se a revisão do modelo de crescimento para dar maior sustentabilidade social e ambiental (a liderança chinesa parece já ter se dado conta de que a deterioração ambiental pode se constituir em um gargalo para a própria continuidade do crescimento econômico) .

A decolagem chinesa gerou uma enorme onda de oportunidades e prosperidade, mas também criou alguns "perdedores", na forma de concorrentes de outros países deslocados de seus mercados tradicionais.

Para quem, como eu, vive há quase três anos na China, o dinamismo é visível no cotidiano. Da perspectiva de um diplomata, também é palpável a tradução dessa enorme vitalidade econômica em um impressionante avanço da China em termos de poder e influência internacionais.

O uso competente de sinergias econômicas confere respaldo a uma diplomacia articulada, resultando em um "círculo virtuoso" que garante à China amigos, votos, mercados... - e, acima de tudo, poder real.

Pequim já se tornou, a meu juízo, a segunda capital diplomática do mundo, depois apenas de Washington, D.C. Sem a participação chinesa, não há como pensar no equacionamento dos desafios globais nas áreas de meio ambiente, mudanças climáticas, energia e sustentabilidade do desenvolvimento de uma maneira geral.

Há mais do que o surgimento de uma nova potência econômica. O processo a que estamos hoje assistindo só tem paralelo recente na enorme transformação que ocorreu nos Estados Unidos da América entre os fins da Guerra Civil e da I Guerra Mundial. Dizem que o século XXI será o século da Ásia - provavelmente, será o século da China.

O Brasil, na sua circunstância de grande país emergente, certamente não poderá ficar alheio a esse enorme mundo novo: deverá articular mecanismos para ampliar os níveis atuais de parceria e cooperação.

É verdade que a China assusta. É verdade que seus produtos, a preços competitivos, ganham terreno em nosso próprio mercado interno, afetando indústrias domésticas. Mas a prosperidade chinesa tem sido, e pode continuar a ser, extremamente positiva para a economia brasileira.

A China absorve quantidades importantes de nossas exportações de commodities, especialmente soja, ferro e petróleo, sustentando seus preços internacionais em níveis altamente remuneradores. Importações de material eletrônico e fios têxteis chineses entram como insumo na indústria brasileira e garantem sua competitividade internacional; bens finais "leves" têm assegurado preços acessíveis para a população de baixa renda. Empresas brasileiras ganham espaço na China. Empresários chineses também começam a tomar o caminho do Brasil -- e espero que ampliem consideravelmente sua presença entre nós como investidores.

Em outras palavras, a China não deve ser vista como uma "ameaça" ao Brasil. Não que eu pretenda minimizar o dilema daquelas indústrias mais diretamente impactadas. Mas é fundamental reconhecer que a única resposta possível, em cada caso, é a das políticas públicas de reforço da competitividade estrutural, associadas a estratégias empresariais que possam identificar nichos de mercado ao melhor custo.

Se o Brasil não quer, nem deve, perder o bonde das oportunidades representadas pela China, uma primeira premissa é a de não cair na tentação das soluções simplistas, como preconizar um protecionismo, de resto pouco eficaz em uma economia cada vez mais globalizada. Isso não nos levará a lugar algum. Claro, não se deve abrir mão de medidas de defesa comercial, mas é preciso ter em mente que não devem ser substitutas de uma política de comércio exterior.

A segunda premissa é mais estratégica: identificar as áreas realmente propícias para parcerias bilaterais. A prioridade deve ser dada aos setores onde já existe uma complementaridade bem assentada entre nossas economias. De um lado, temos a abundância de recursos naturais do Brasil; de outro, a demanda chinesa, somada a uma grande disponibilidade de capital e à disposição, declarada, de aumentar a "internacionalização" de suas empresas.

Vejo aí um cenário propício a muitos empreendimentos. E, mais importante, a possibilidade de evoluirmos de um modelo em que a China meramente nos compra produtos de base, com pouco ou nenhum processamento, para um cenário onde investimentos chineses no Brasil propiciem que parte da cadeia processadora desses insumos seja instalada aqui, com melhoria da infra-estrutura.

O que pode haver de mais estratégico do que alimentos para uma sociedade de 1,5 bilhão de pessoas em 2050? Não podemos esquecer que esses chineses estarão mais ricos, e, portanto, comerão mais, e melhor. Além de não haver, na China, terra e, sobretudo, água suficiente para cultivar e produzir o necessário, também parece ser do interesse chinês economizar a energia e a água dos processos produtivos que serão conduzidos no Brasil.

A China tem moderna indústria de obras públicas, cada vez mais internacionalizada - já fomos procurados por uma das maiores empresas, interessada em projetos de infra-estrutura de transporte e portuária. Iniciativas assim poderiam ser replicadas para o agronegócio.

A parceria Brasil-China deve ser uma "Agenda de oportunidades". O que há, na verdade, são desafios, que podem e devem ser bem enfrentados pelas duas nações.

LUIZ AUGUSTO DE CASTRO NEVES é embaixador do Brasil na China.