Título: A Conexão Flórida
Autor: Werneck, Antônio
Fonte: O Globo, 12/08/2007, Rio, p. 20

Armas compradas nos EUA por brasileiros terminam nas mãos do tráfico no Rio.

Com 18 milhões de habitantes, o ensolarado estado americano da Flórida passou a ser procurado por quem deseja encontrar um clima agradável durante praticamente todo o ano, mas começa a ser conhecido também como o paraíso das armas. Rastreamento efetuado pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos revela que a maior parte das armas americanas apreendidas com bandidos do Rio veio de lá. O contrabando é feito por brasileiros, segundo a Subcomissão Especial de Armas e Munições da Câmara dos Deputados em Brasília, que pediu o rastreamento de 3.654 armas de fabricação americana apreendidas na ilegalidade pela polícia no Rio entre 1998 e 2003.

Trabalhando com uma amostragem de 856 armas, enviada ao Bureau of Alcohol, Tobacco, Firearms and Explosives (ATF), do Departamento de Justiça dos EUA, a subcomissão descobriu que 34,46% vieram dos EUA e a maioria, do Estado da Flórida.

Ainda segundo a subcomissão, que contou com o apoio técnico da ONG Viva Rio, cerca de 74% dessas armas são de uso restrito (proibidas a civis pela legislação do Brasil). Dessas armas, 23% eram fuzis e 10,6%, excedentes de armamento de guerra dos EUA. E o mais surpreendente: de 133 compradores identificados, 43 eram brasileiros. A subcomissão descobriu ainda que 56% dos brasileiros são residentes nos Estados Unidos.

Vendas até em clubes de tiro

O deputado federal Raul Jungmann, presidente da subcomissão, explicou que os dados foram solicitados quando ainda funcionava na Câmara dos Deputados a CPI sobre Organizações Criminosas do Tráfico de Armas (CPI das Armas), que concluiu seus trabalhos em novembro do ano passado. Jungmann disse que o importante é saber agora como essas armas entraram no país:

- A ATF conseguiu rastrear 856 armas da mencionada lista, isto é, identificar o primeiro comprador dessas armas produzidas nos Estados Unidos. Esta resposta chegou após a extinção da CPI, e foi encaminhada à subcomissão. É a primeira vez que isso acontece com um grande volume de armas e demonstra que podemos contar com a ajuda do governo americano - disse o deputado.

O presidente da subcomissão voltou a dizer que o assunto é grave e precisa ser tratado como uma política de governo.

- Durante a CPI nós apresentamos o testemunho de militares e policiais que identificaram falsos colecionadores e atiradores esportivos que são, na verdade, traficantes de armas e munição; e também como clubes de tiro se tornaram verdadeiras feiras desses produtos, controlados de forma precária - afirmou Jungmann.

PF investigou um militar da reserva

Antônio Rangel, do Viva Rio, lembrou que os criminosos compraram no exterior armas que não podem comprar aqui, por serem de uso restrito. Ainda segundo Rangel, a investigação da ATF revela que as armas americanas apreendidas com bandidos aqui foram vendidas, na sua grande maioria, para brasileiros nos Estados Unidos.

- Agora é preciso buscar respostas: como essas armas vieram de lá até as mãos do crime organizado no Rio? Através de fronteiras, como do Suriname ou do Paraguai? Por mar ou por ar, devido à falta de fiscalização de aeroportos, portos (especialmente da Baía de Guanabara)? Por correio? Essa é uma investigação que deveria ser feita pela Polícia Federal. A polícia do Rio pode colaborar, mas é atribuição da PF o combate ao tráfico ilícito de armas, principalmente quando é internacional - afirmou o pesquisador do Viva Rio.

No ano passado, depois de investigar um derrame de fuzis apreendidos com traficantes cariocas, a Polícia Federal chegou a um oficial da reserva do Exército, dono de uma empresa de armas em Miami e que já colaborou com a comunidade de informações. Na investigação, a PF acreditava ter o militar se associado a traficantes e vendido armas com grande poder de fogo, como fuzis Rugger, de fabricação americana.

O negócio do militar teria como fachada legal uma empresa de importação e exportação localizada no Rio e intermediários no Paraguai, entre eles militares daquele país. As armas compradas nos EUA eram desmontadas, postas em contêineres lacrados e enviadas ao Rio de navio. Segundo as investigações da Polícia Federal, pelo menos duas mulheres e um homem com trânsito no tráfico seriam os encarregados de reunir os pedidos dos traficantes e de receber e entregar as armas aos bandidos nas favelas.

Segundo a investigação da PF, fuzis Rugger da série 186 - apreendidos no Rio - teriam sido vendidos para o militar brasileiro, uma empresa em Miami e uma importadora sediada no Rio. Pelo rastreamento, uma parte das armas foi enviada de navio até o Porto de Santos e seguiu de caminhão até o Paraguai. De lá, apuraram os policiais federais, a carga chegou ao Rio trazida por "mulas" em carros, ônibus ou caminhões. Um outro lote teria sido importado diretamente pela empresa do Rio através do porto na cidade.

O contrabando de armas de Miami para o Rio foi confirmado em dois depoimentos que estão em poder dos policiais federais. Um dos depoentes, um homem, admitiu que foi intermediário. Ainda segundo o homem, estariam entre os supostos "clientes" do militar traficantes da Favela da Rocinha, do Jacarezinho e dos morros da Mangueira, no Rio, e do Cavalão, em Niterói. Cada fuzil vendido custaria aos traficantes entre R$4 mil e R$5 mil.

Amostragem inicial de dez mil armas

Desde o último domingo, O GLOBO tem revelado numa série de reportagens como os traficantes conseguem parte significativa de seu armamento. É com esse arsenal que os bandidos desafiam as autoridades em ações muitas vezes caracterizadas como terroristas. Com fuzis e pistolas, muitos deles usados por militares em países em guerras declaradas, enfrentam e matam policiais; assaltam; e controlam com mão de ferro territórios em morros e favelas do Rio.

Tendo como base trabalho inédito de rastreamento feito pela Subcomissão Especial da Câmara Federal, O GLOBO tem mostrado que armas do arsenal da Polícia Militar e de policiais militares foram parar com criminosos. Constatou que também o Exército, a Marinha e a Aeronáutica tiveram armas de seus estoques desviadas para os criminosos, assim como o Departamento da Polícia Federal, a Polícia Civil e a Polícia Rodoviária Federal. A Subcomissão Especial trabalhou com uma amostragem de pouco mais de dez mil armas, das mais de 200 mil encontradas no depósito da Delegacia de Fiscalização de Armas e Explosivos (DFAE) da Polícia do Rio, apreendidas entre 1990 e 2005.