Título: Aimorés, uma cidade que perdeu o seu rio
Autor: Leitão, Míriam
Fonte: O Globo, 12/08/2007, Economia, p. 35
A VOLTA DO VERDE: Sebastião Salgado afirma que obra não comprou "nem um saco de cimento" no município.
Vale e Cemig usaram as águas para fazer uma usina hidrelétrica, que só começará a pagar ICMS em 2008.
AIMORÉS (MG). A cidade de Sebastião Salgado, Aimorés, foi construída entre a margem do Rio Doce e a estrada de ferro da Companhia Vale do Rio Doce. Por isso, a cidade se estica, magra e comprida, entre esses dois pontos. O trem ainda passa por lá, mas o rio sumiu. A Vale e a Cemig levaram embora as águas para fazer uma hidrelétrica. A usina desvia o curso d"água por nove quilômetros, exatamente o trecho que banhava a cidade.
- É como diz o Tião: assassinaram o Rio Doce - lamenta o prefeito da cidade, Alaerte da Silva.
Não completamente: ele existe antes da cidade e volta mais embaixo, depois que ela já passou. Mas, em Aimorés, havia um rio, e hoje o que existe é apenas leito seco, cheio de pedregulho e areia. Por mórbida ironia, os donos da hidrelétrica deram um presente ao município: um projeto chamado "Revitalização da Beira Cais", com três mirantes para que os moradores possam melhor apreciar o esqueleto do rio que ali ficou.
O argumento da Vale é que o problema está na seca
Roger Agnelli, o presidente da Vale, explica que, naquela área em frente a cidade, o rio era apenas uma corredeira, que reduzia muito sua vazão durante a seca. A diretora de Energia da empresa, Vania Somavilla, vai além: garante que, na época da seca, o rio praticamente sumia.
- Ficava apenas um canalão. A usina criou uma área de vazão reduzida que manteve as mesmas condições originais - afirma.
Não é o que se vê por lá. Andar pelo leito do rio revela que se pode até, com um certo esforço, encontrar algumas pocinhas. O mais que há é um areão seco e as pedras que carregam ainda as marcas das águas que passaram por lá por milhares de anos. Aos desenhos velhos nas pedras se juntam novas marcas de pichações, como uma que traz apenas uma palavra: "morte".
- Hidrelétricas não somem com a água, apenas desviam, usam e devolvem a vazão - argumenta a diretora da Vale.
É fato. Hidrelétricas desviam rios. Mas esta desviou exatamente no ponto que banhava a cidade, deixando os moradores debruçados sobre o vazio.
- É uma violência. Eu entendo a necessidade de se produzir energia, mas ninguém tem o direito de destruir a maneira de viver de uma comunidade. Temos agora o cadáver de um rio - reclama Sebastião.
Vania Somavilla insiste que a situação não mudou muito:
- As pessoas têm memória curta. O Rio Doce, nessa altura, aumenta a vazão mais de vinte vezes na época das chuvas em relação à época da seca. Na seca, o rio, reduzido, cabia inteiro numa fenda geológica. Foi mais ou menos isso que foi mantido - diz ela.
Moradores têm histórias outras. Todos eles contam que ali passava um rio, todos admitem que ele reduzia um pouco na seca, mas continuava sendo um rio. Quem vai lá vê que, simplesmente, não há mais rio ali. A Vale culpa a seca, que está, de fato, forte este ano. A seca não explica tudo.
- Antes, quando dava a seca, a água diminuía, dava para ver umas pedras, mas o rio continuava. A prova é que antes havia uma adutora que, na altura da cidade, captava água para abastecimento. Agora, teve que ser construída outra adutora lá para cima, no Rio Manhuaçu - diz o prefeito de Aimorés, que completa:
- Conheço muita barragem, não conheço assim de global não, mas conheço algumas. Nunca vi isso, desviar o rio de uma cidade.
Sebastião Salgado diz que a hidrelétrica não deixou nada no município:
- Trouxeram os técnicos de fora, nenhum saco de cimento foi comprado aqui, as ferragens foram compradas pelas construtoras em grandes quantidades longe daqui. Aimorés não viu nada.
A Vale assegura que a cidade foi beneficiada e tem números: diz que Aimorés já recolheu R$7 milhões de ISS na construção, compensação financeira de R$2,4 milhões.
O prefeito Alaerte faz coro com Sebastião:
- Não compraram aqui uma caixa de prego. O impacto foi muito frustrante, tinha muita gente achando que a cidade ganharia. A usina opera há três anos e só em 2008 vai começar a pagar ICMS, e, pelas contas, vai ser muito menos do que o Baixo Guandu recebe por uma usina menor.
A Vale explica que a demora do ICMS e a diferença com o Baixo Guandu têm a ver com as legislações tributárias de Minas e Espírito Santo. Mas o prefeito não se conforma:
- Havia uma idéia de fazer um espelho d"água, e ele não foi feito.
A diretora da Vale admite que, realmente, no começo do projeto, antes de a Vale entrar, foi prometido à cidade fazer um lago ali em frente, o que é tecnicamente impossível.
- Já vi esses desenhos por aí, de um lago até com cisne, mas não sei quem prometeu - diz Vania.
Aimorés é só um exemplo de falta de cuidado no Brasil
A história de Aimorés e seu rio roubado por uma hidrelétrica ensina que o Brasil não tem conseguido conciliar de forma razoável perdas e ganhos no conflito entre energia e meio ambiente. A idéia mais repetida no país é de que o meio ambiente tem impedido o avanço na construção de novas usinas de geração de eletricidade. Os empresários pressionam, o governo quer rapidez, qualquer objeção é vista como um entrave ao progresso.
Na Vale, ninguém sabe dizer se havia outra opção menos traumática.
- Essa solução foi a mais interessante tecnicamente - diz Vania.
Interessante não parece a palavra certa. Melancólico descreve melhor o sentimento de quem olha a paisagem do mirante inútil. No fim do dia, em Aimorés, só as pedras refletem o brilho do sol no leito seco do Rio Doce.