Título: Os exilados das favelas
Autor: Rocha, Carla e Amora, Dimmi
Fonte: O Globo, 21/08/2007, Rio, p. 12

Moradores são forçados a deixar as suas casas por traficantes, milicianos e até policiais.

Quando faltava comida em casa, Iara, de 24 anos, saía perambulando pelas ruas da Penha, de Bonsucesso e Ramos, pedindo esmola, puxando pela mão seus três irmãos menores. Doente mental, a mãe era aposentada do INSS. O pai morrera cedo. Desde então, ela já trabalhou muito, sempre sem carteira assinada, distribuindo panfleto em sinal de trânsito, de balconista em farmácia e, por último, foi para o calçadão de Copacabana fazer programa. Conseguiu um barraco na Favela de Vigário Geral, mobiliou "com jogo de sofá" e arrumou um namorado, sujeito esforçado, integrante de uma ONG. Mas traficantes de Parada de Lucas invadiram Vigário depois de anos de rivalidade.

- Os vizinhos ligaram pra mim, dizendo que os traficantes de Lucas tinham estado no meu barraco, me procurando pelo nome, dizendo que iam me matar e tacar fogo na minha casa. Não pude voltar. Perdi tudo. A minha casa já foi alugada para o tráfico. A da minha mãe, que também foi expulsa, já até passou para o nome de uma outra pessoa, foi registrado lá na associação de moradores.

Os acontecimentos acima se desenrolaram no dia 23 de junho deste ano, durante a invasão da Favela de Vigário Geral. Mas eles se repetem em dezenas de favelas do Rio, onde há um número incalculável - não há entidades dedicadas a esse levantamento - de pessoas exiladas. Hoje, a série "Os brasileiros que ainda vivem na ditadura" vai contar a história de pessoas que, assim como os militantes políticos obrigados a deixar o país, tiveram de abandonar suas casas, expulsas pelo tráfico ou pela milícia. Algumas fogem da própria polícia. Elas serão tratadas por codinomes. Ontem, O GLOBO mostrou que a prática da tortura, igualmente usada durante o regime de exceção, ainda não acabou.

Duzentas famílias, pelo menos, foram expulsas de Vigário. Iara, porque namorava um rapaz que já atuara no tráfico. Ela está vivendo com a filha, de 2 anos, de favor na casa de um amiga. Denunciar? Ela nem pensa nisso.

- Vou reclamar com a polícia? Se eu fizer isso, os policiais vão lá me dar para os bandidos. Nem pensar - diz ela, que ficou sem roupas, fotos, documentos, tudo.

Filho de porteiro virou soldado do tráfico

Trabalhando como porteiro, seu Arnaldo, de 42 anos, foi morar numa ocupação irregular na Zona Oeste em meados dos anos 90 com a mulher e quatro filhos. Construiu inicialmente um único cômodo de tijolos aparentes, onde todos dormiam. No local, o tráfico se resumia a um ponto de venda, com dois ou três bandidos armados de pistolas. A ocupação cresceu, tornou-se uma grande favela, e o tráfico não ficou atrás. Um bando se formou. Fã de Bob Marley, o filho mais velho, aos 15 anos, começou a fumar maconha. Daí para fazer uns bicos para a quadrilha, e assim sustentar o vício, foi um pulo. Passou a cheirar cocaína. Dormia de dia para "trabalhar" à noite e virou soldado do tráfico. No dia 12 de agosto de 2005, ele levou quatro tiros de fuzil da polícia, dois deles no peito. Sobreviveu depois de 47 dias no Hospital Rocha Faria e, ao sair, foi para o Educandário Santo Expedito.

- Nesse momento, descobri o verdadeiro sentido da palavra esperança. Meu filho estava vivo - lembra Arnaldo.

Mesmo com tantos problemas, Arnaldo entrou no curso de matemática na Uerj e, ainda trabalhando como porteiro, começou a dar aulas num pré-vestibular para moradores de favela. Ameaçado tanto por traficantes como por policiais associados aos bandidos, por tentar tirar o filho do crime, ele não teve outro jeito a não ser deixar para trás a casinha que nasceu de suas mãos. A milícia assumiu o controle da favela, mas o tráfico está tentando retomá-la. Arnaldo deixou tudo para trás, apostou no filho e comprou uma biografia de Bob Marley para ele ler no internato e entender que havia mais a saber sobre o músico do que seu gosto pela maconha. Apesar de tudo, o pai só se revolta quando alguém levanta a hipótese de seu sofrimento ter relação com a má índole do primogênito. Para ele, foi quase um caminho inevitável.

- O seu filho já viu corpo esquartejado ou uma pessoa fumando maconha ou cheirando cocaína? Todos os meus já viram, desde pequenos. Só num confronto entre quadrilhas rivais de traficantes, mataram cinco jovens, decapitados, degolados, esquartejados. O mundo na favela é aquilo ali, baile funk, é um mundo muito limitado. Desde que o meu filho foi baleado até ser solto (em 2006), acho que cem jovens foram mortos na comunidade, pela polícia ou pelo tráfico.

O filho de Arnaldo, depois de um longo período de depressão, parou de usar drogas e se prepara para voltar a estudar.