Título: Era da incerteza
Autor: Leitão, Míriam
Fonte: O Globo, 21/08/2007, Economia, p. 22

No mercado, os empréstimos subprime eram conhecidos como "empréstimo de nêutron" que, como a bomba, "mata as pessoas e deixa as casas", contou, neste fim de semana, o "New York Times". Como é que então os bancos não viram o que estava por vir e precisam agora de taxas de juros menores e um rio de liquidez? Não viram porque não quiseram. Quem agiu diante da proximidade do perigo ganhou muito.

O NYT conta a história de Jim Melcher que, no ano passado, diante do aumento da inadimplência no mercado imobiliário e de novos casos de retomada do imóvel, posicionou US$100 milhões do seu hedge fund, o Balestra Capital, em que haveria uma crise. Em outubro, apostou US$10 milhões que os bônus feitos a partir das hipotecas de alto risco iriam despencar. Nos primeiros meses de 2007, reinvestiu os lucros na mesma aposta; ao todo, US$60 milhões. "Foi uma oportunidade única na vida", disse Melcher ao jornal americano. Nestas semanas em que o mercado está em crise, ele está com a mulher, em Paris, de férias.

Por que os outros não viram? Porque não quiseram e estavam ganhando muito dinheiro com os juros excessivos cobrados dos compradores que, afogando-se, aceitavam qualquer bóia de salvação lançada pelos corretores e bancos, na esperança de sobreviver ao tsunami no mercado de crédito.

E agora? Paul Krugman defendeu num artigo que a ajuda do governo deve ser para resgatar os compradores de imóveis em dificuldades. Mas como fazer isso se os mais atingidos são, em tantos casos, imigrantes ilegais, ou sem documentação adequada, como o GLOBO mostrou na reportagem de domingo sobre a comunidade brasileira nos Estados Unidos?

A imprensa americana tem contado histórias de bons pagadores que também passam a enfrentar os mesmos problemas. Na hora do nó no sistema de crédito, está sobrando para todo mundo.

"A lista dos personagens que não viram os sinais do aumento da inadimplência e da retomada de imóveis está ficando mais fácil de identificar: ela inclui bancos de investimento felizes por venderem arriscados e lucrativos títulos da dívida hipotecária; hedge funds famintos por altas taxas de juros; agências de classificação de risco desejando esperar o melhor para o mercado de imóveis e dando ótimas avaliações para os emissores de dívida; e os corretores de imóveis que vendiam para mercado subprime, viciados em alto volume de vendas", diz o "New York Times".

Ontem foi um dia melhor por todo o planeta. Começou bom na Ásia, depois na Europa e chegou do lado de cá com um ar de tranqüilidade, que parecia indicar o começo do fim da turbulência. Seria ótimo, mas o remédio dado ao mercado desde o primeiro momento é só para combater os efeitos, e não a causa. A assistência de liquidez fornecida pelos bancos centrais e a redução da taxa de redesconto diminuem apenas o medo dos bancos de emprestarem uns aos outros, mas não pagam as dívidas de quem está encrencado com hipotecas, nem elevam o valor dos bônus feitos a partir dessas hipotecas. Foi no mercado imobiliário que a crise começou e é onde ela permanece.

Nos anos 80, houve uma grande crise no setor de imóveis: a das savings and loans (empresas de poupança e empréstimo imobiliário). Elas quebraram e saíram do mercado. Era um mundo infinitamente mais simples. As empresas que emitiam os créditos aos compradores de imóveis carregavam estes papéis. Hoje a dívida emitida vira ativo no momento seguinte e é passada adiante sucessivamente, dividida, reempacotada nos bônus garantidos por hipotecas. Em cada uma dessas etapas, vai rendendo comissões aos lançadores de papéis. Este processo é tão vertiginoso que uma dívida para compra de casa em Ohio pode estar num hedge fund na Rússia ou na carteira de um fundo do BNP Paribas, em Paris, ou em alguma instituição mais remota. Como se desfazem estas sucessivas conexões?

A atuação dos bancos centrais reduziu um pouco o nervosismo num mercado que estava entrando em pânico, mas não resolve esse tipo de problema. É por isso que já se sabe que uma das conseqüências será um crescimento americano menor. O comprador de imóveis está com uma parte maior do seu orçamento consumido com o pagamento do imóvel que comprou. O que quebrou, quebrou; o que não quebrou está cortando seu endividamento e consumindo menos.

O curioso é que o consumidor americano foi incentivado a fazer nada mais, nada menos o que o próprio governo tem feito há anos: consumir além de suas possibilidades, emitindo dívidas para cobrir a despesa que excede a receita. Os EUA têm um déficit externo de 6,6% do PIB. O déficit fiscal, que era também alto, tem caído por conta da arrecadação, mas eles estão gastando mais e emitindo mais dívida.

A revista "Economist" disse que os salva-vidas estavam vasculhando o horizonte temendo o risco de um choque de petróleo, uma falência, ou um ataque terrorista, quando o perigo estava dentro do sistema financeiro. O mesmo sistema do qual, há anos, os agentes se orgulhavam por causa das modernizações que tinham introduzido ao securitizar dívidas para transformá-las em ativos negociáveis para, assim, diluir o risco embutido no empréstimo.

Esse nó formado no sistema financeiro internacional ainda não foi desfeito, portanto, a incerteza continua.