Título: A ONU tem direito à verdade
Autor: Despouy, Leandro
Fonte: O Globo, 24/08/2007, Opinião, p. 7

No último 19 de junho, na qualidade de Relator Especial das Nações Unidas sobre a Independência de Juízes e Advogados, formulei um apelo urgente ao governo iraquiano, através de um comunicado de imprensa, com o objetivo de evitar a iminente execução de Awraz Andel Aziz Mahmoud Sa"eed. Tratava-se do último sobrevivente dos supostos autores do atentado que tirou a vida de Sérgio Vieira de Mello e de outras 21 pessoas, no atentado contra as Nações Unidas em Bagdá (19/8/2003). No entanto, ele foi enforcado no dia 3 de julho.

A urgência do apelo obedecia ao fato de que seis das sete pessoas supostamente participantes do atentado, ou que teriam tido conhecimento de algum aspecto dele, perderam a vida em circunstâncias violentas; presumivelmente foram vítimas de atentados, ou enfrentamentos, ou execuções em território iraquiano.

Minha oposição à pena de morte no Iraque não é nova; em casos anteriores, censurei-a por carecer de um processo adequado e por defender o direito à verdade das vítimas e do povo daquele país em virtude dos crimes atrozes cometidos sob o regime do ditador Saddam Hussein.

Nessa oportunidade o apelo resguardava, ademais, o direito à verdade dos sobreviventes e das vítimas do atentado contra a ONU, pois a execução do terrorista Awraz Andel Aziz Mahmoud Sa"eed deixava em perigo a última possibilidade de se obter um testemunho que poderia ajudar a elucidar o ataque. Segundo fontes da ONU, o acusado havia se mostrado disposto a testemunhar sobre tudo o que sabia sobre o fato.

Além dessas considerações, e diante da gritante opacidade em que esse tema continua envolvido, está em jogo o respeito à autoridade da ONU, brutalmente atingida por um atentado que, sem dúvida, é um dos mais graves que já sofreu em toda sua história.

O caráter público desse apelo não pretendia somente uma reação positiva do governo iraquiano: queria também mobilizar a comunidade internacional e, particularmente, os governos dos países ocidentais que se reconhecem como principais atores da arquitetura institucional do novo Iraque - incluindo aqueles altos dignitários que sempre têm proclamado franca estima e admiração por Sergio Vieira de Mello. É inegável que se tratava de uma personalidade deslumbrante, dotada de qualidades originais e valiosas; poucas vezes a ONU contou com um funcionário tão capaz, valente e comprometido com seus ideais e valores.

O esforço foi em vão: as autoridades iraquianas se negaram a responder à minha solicitação urgente e, com a execução, como se tem dito, silenciaram uma testemunha fundamental.

Trata-se de um desses atos mais parecidos com a vingança do que com a justiça, em um país que já ouve o fragor da guerra civil. A quem beneficia esse manto de obscuridade? Com essa nova execução o direito de acesso à verdade foi definitivamente obstruído? Esperemos que não...

Na luta contra a impunidade, o exercício do direito à verdade ocupa um lugar central e ambos compreendem aspectos essenciais das minhas funções como Relator Especial. A atitude do governo iraquiano diminui a importância e degrada esta luta, deixando vazia a página onde se deveria começar a escrever parte da trágica história da ONU no Iraque.

LEANDRO DESPOUY é relator especial das Nações Unidas sobre a Independência de Juízes e Advogados.