Título: Compromisso consciente
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Fonte: O Globo, 27/09/2008, Opinião, p. 7

Celebramos festivamente o Dia da Bíblia no último domingo do mês de setembro. A grandeza do conteúdo faz desse Livro único o mais conhecido em todos os tempos. Aliás, foi com ele que Gutenberg inaugurou seu invento ¿ a imprensa ¿ talvez a mais útil criação da inteligência humana, por ter possibilitado a difusão, em larga escala, das idéias.

Em um mundo onde é crescente a agitação e o isolamento, temos na Bíblia seguramente o melhor interlocutor. Ali está o conforto aos desiludidos, que não obtiveram no imenso progresso da técnica e da ciência a razão da própria existência. Os famintos, materialmente ou não, recebem um alimento que os reanima.

A explicação é encontrar-se na Sagrada Escritura, interpretada pela autêntica Tradição, um Deus que se revela aos homens, a todos e em todos os tempos, pois a Palavra divina não se cristaliza na História, a ela ultrapassa e transcende.

O fato central, a essência desse fenômeno que supera todas as vicissitudes, perseguições e ameaças, é a manifestação de uma Aliança. Esse é o fio condutor para o entendimento desses setenta e três livros escritos à luz da Inspiração, durante mais de um milênio.

Frustrado o plano divino pelos primeiros pais, o Senhor promete restaurá-lo em Noé e realiza-o em Abrão ¿ que terá o nome alterado para Abraão: ¿Dar-te-ei, e à tua posteridade depois de ti, a terra em que moras como peregrino¿ (Gn 17,8). ¿Deixa tua terra, tua família, a casa de teu pai, e vai para a terra que Eu te mostrarei¿ (Gn 12,1).

Assim, o transcorrer dos dias e das gerações não é violentado em seu curso natural, mas se transforma em uma manifestação salvífica. A Bíblia é um conjunto de verdades propostas, uma interpelação na qual aquele que dialoga com Deus deve dar uma resposta. O remédio para a miséria e marginalização dos oprimidos, a solidão e a dor, a desesperança e angústia em todas as dimensões está na Sagrada Escritura e não nas ideologias e em elucubrações exclusivamente humanas. Ali há permanentemente uma indicação viva e eficaz: a pobreza espiritual e as injustiças sociais são um insulto ao Redentor, pois ¿o que fizerdes a um destes pequeninos é a mim que o fareis¿ (Mt 25,40). Ou ainda: o Senhor quis abrir o caminho da libertação a um povo prisioneiro dos erros, em todos os níveis. ¿Fá-lo com mão forte e braço estendido¿ (Dt 5,15). Alguém que ouviu ¿o grito destes pobres, viu a miséria do seu povo¿ (Ex 3,7.9).

Essa mensagem, entretanto, foi e será sempre uma afronta ao mundo. Eis alguns exemplos: a exortação ¿não acumulem tesouros na terra¿ (Mt 6,19) soa como uma aberração. Entre os conflitos e divergências somos chamados a viver as bem-aventuranças: ¿Felizes os que constroem a paz¿ (Mt 5,9). Na procura de soluções terrenas para as doenças e sofrimentos de toda espécie, Ele replica: ¿Vinde a mim vós que estais aflitos¿ (Mt 11,28). Ou: ¿Pedi e recebereis, batei e abrir-se-vos-á¿ (Mt 7,7; Lc 11,9). O apelo à esperança, que ¿nem o ouvido ouviu o que Deus preparou¿ (1Cor 2,9), diverge profundamente dos conceitos emitidos, inclusive por cristãos, que atraiçoando o Mestre tentam mascarar a pureza desse pacto transcendental.

A celebração do Dia da Bíblia nos lembra também a importância dos círculos bíblicos. Por esse Brasil afora, nas diversas paróquias em comunidades, se reúnem, semanalmente, milhares e milhares de cristãos em pequenos grupos para uma reflexão profunda do ensino sagrado. Todos eles são levados a um compromisso sempre mais consciente com a dimensão espiritual de sua fé que se concretiza em todas as dimensões da vida humana.

O Dia da Bíblia fortifica ou restaura este pacto com Deus, única solução ao mundo conturbado e insatisfeito.

D. EUGENIO SALES é cardeal-arcebispo emérito da arquidiocese do Rio.