Título: O analfabetismo vai à escola
Autor: Fogaça, Azuete
Fonte: O Globo, 28/09/2008, Opinião, p. 7

Dados recentes do IBGE mostram mais uma das múltiplas faces da crise do sistema educacional brasileiro. Até a década de 1980, o analfabetismo brasileiro era explicado basicamente pela escassez de vagas nas redes públicas de ensino, o que diminuía as oportunidades educacionais da maioria da população brasileira em idade escolar. Hoje, o que se comprova é que os analfabetos estão dentro da escola, que se mostra incapaz de cumprir uma de suas tarefas mais tradicionais e básicas, mesmo quando os alunos nela permanecem por até oito anos, tempo suficiente para que completassem o Ensino Fundamental.

Certamente várias justificativas "oficiais" serão dadas para esse triste fato. A precariedade das escolas, a escassez de recursos financeiros para equipar a rede escolar, a formação insuficiente dos professores são fatores explicativos largamente utilizados nessas situações que evidenciam o fraco desempenho do sistema educacional brasileiro. Entretanto, se dermos uma olhada mais atenta nas análises e nos diagnósticos da crise educacional nas três últimas décadas, poderemos observar o predomínio das interpretações que, ao fim e ao cabo, depositavam nos ombros dos alunos e de suas famílias a responsabilidade maior sobre o fracasso escolar.

Num sistema público de ensino no qual mais de 70% dos alunos vêm de famílias pobres, essa percepção deu margem a que se encenasse então uma farsa grotesca, um infeliz jogo de faz-de-conta, no qual os professores realizam um trabalho pedagógico absolutamente inócuo, para eles plenamente justificado pelas carências materiais da escola, pelos seus baixos salários mas, principalmente, pelas condições de vida dos alunos. Nesse contexto, não constitui problema se o professor falta às aulas, se há excesso de alunos nas turmas, se o traficante do bairro manda fechar a escola, se o material didático está ultrapassado, se a grade curricular é extensa demais; na verdade, estamos falando de um sistema educacional no qual administradores e docentes entendem como natural que uma criança freqüente as aulas por anos a fio sem conseguir aprender o mínimo que se espera de qualquer escola elementar: ler e escrever.

Partindo do princípio, correto aliás, de que o desempenho escolar é profundamente influenciado pelo ambiente familiar, os inúmeros diagnósticos que ressaltavam essa influência acabaram contribuindo para que, de certa forma, a escola lavasse as mãos diante do fracasso da maioria, a pretexto de que nada mais se poderia fazer, além do que já estava sendo feito, para que crianças vindas de famílias pobres, desestruturadas ou não, pudessem aprender. Se a mãe tem pouca escolaridade, se o pai sumiu no mundo, se a criança vive numa comunidade violenta, já se sabe, então, de antemão, que essa criança não vai aprender, o que, por sua vez, determina que não se invista nela o suficiente para que suas potencialidades desabrochem. As conseqüências dessa atitude são extremamente perversas, pois a própria escola, ao explicar seus maus resultados a partir das carências familiares e individuais dos seus alunos, faz com que as famílias aceitem passivamente o fracasso dessas crianças, reconhecendo-as como incompetentes para realizarem todo o percurso previsto na educação escolar, numa aceitação tácita de que não são inteligentes ou, como afirmam, não têm "cabeça boa para os estudos".

Com esse conjunto de fenômenos, elimina-se um importante fator de mudança social que estaria expresso na maior e melhor educação das crianças vindas dos segmentos mais carentes, mantendo-se o circuito reprodutor da pobreza onde, salvo raras exceções, os filhos dos pobres estão predestinados a permanecer pobres.

Embora não se deva descartar as variáveis que se situam fora da escola, é preciso reconhecer que não dá mais para explicar o fracasso escolar apenas por uma suposta falta de condições de aprendizagem da clientela e por um também suposto desinteresse familiar.

Atualmente, quando se conhecem melhor as respostas da população ao problema educacional - o tanto que as famílias pobres investem direta e indiretamente na educação - e quando já se sabe que apenas em situações extremas as carências materiais, nutricionais, afetivas ou culturais significam um entrave definitivo à aprendizagem, o que sobressai é a deficiência do trabalho pedagógico, ou a parcela de responsabilidade do próprio sistema educacional na geração e manutenção da pobreza.

AZUETE FOGAÇA é professora da Faculdade de Educação Universidade Federal de Juiz de Fora.

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