Título: O sistema financeiro está pronto para crescer
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Fonte: O Globo, 28/09/2008, Economia, p. 35

ABALO GLOBAL: O momento mais agudo foi quando o governo americano não socorreu o Lehman Brothers, afirma

Presidente do BC diz que bancos brasileiros estão sólidos e explica que o Fed pediu que países oferecessem dólares

BRASÍLIA. Após o agravamento da crise que quebrou bancos americanos, o presidente do Banco Central (BC), Henrique Meirelles, demonstra confiança. Sexta-feira à noite, dizia-se aliviado com o que chamou de fim da fase de reconhecimento do tamanho da crise. Ele afirma que o crédito é o canal mais rápido de contágio da turbulência, mas garante que os bancos brasileiros estão sólidos. Se houver problema, o BC agirá, escorado em reservas de US$207 bilhões. Meirelles diz que o ciclo de crescimento não será interrompido. Perguntado qual é a cara da crise, não hesita: "É a cara do desespero, do desespero dos operadores". Mas ainda considera o ano de 2003 o mais difícil que viveu no BC: "A crise era nossa".

Patrícia Duarte e Sergio Fadul

O senhor estava no Federal Reserve (Fed), o banco central dos EUA, no dia em que as autoridades americanas reconheceram publicamente que a crise era muito grave. O que o senhor ouviu lá?

HENRIQUE MEIRELLES: Ouvi que a crise americana era severa, que o funcionamento normal do mercado não seria suficiente para trazer uma solução para a crise num prazo aceitável. Os preços dos papéis estavam irrealisticamente baixos e instáveis. Previa-se que seriam necessárias duas coisas. Primeiro, que os bancos centrais do mundo inteiro provessem liquidez em dólares por um período transitório. E, para uma solução mais definitiva, que o governo americano fizesse leilão de compra dos ativos de empréstimos em dificuldade de maneira que isso propiciasse uma estabilização nos preços dos papéis.

Quais seriam esses papéis?

MEIRELLES: Isso será definido pelo Tesouro americano no pacote. Mas, evidentemente, são os mercados de crédito imobiliário e mesmo alguns papéis de crédito ao consumo que apresentaram sinais de estresse.

As reuniões regulares entre os bancos centrais de todo o mundo já mostravam uma tensão crescente sobre a crise?

MEIRELLES: Houve uma evolução do conhecimento da dimensão do problema. No começo, foram algumas instituições localizadas, exposição no mercado de subprime, mas aí começou-se a analisar, ações foram sendo divulgadas, e as regras de transparência começaram a demandar que os bancos, instituições financeiras e seguradoras começassem a mostrar seus resultados. Evidentemente o momento de maior agudeza ocorreu quando houve a decisão do governo americano de não fazer o resgate patrocinado do Lehman Brothers (há cerca de duas semanas). A partir daí, houve de fato um certo pânico. Isso foi, de uma alguma maneira, mitigado pela aquisição da Merrill Lynch pelo Bank of America e pelo resgate da seguradora AIG pelas autoridades americanas. E, recentemente, o Washington Mutual com uma intervenção extremamente ordenada das autoridades americanas e um leilão coordenado, muito eficiente, que também deu uma dimensão mais ordenada.

Quando o senhor estava no Fed, ouviu que era preciso uma ação coordenada dos bancos centrais no mundo para dar liquidez em dólares. Foi uma coincidência o senhor ter anunciado de lá que o BC daqui voltaria a vender dólares depois de cinco anos?

MEIRELLES: Não foi coincidência. Foi exatamente ali que se configurou de fato a disfuncionalidade dos mercados financeiros internacionais em dólares.

A ação dos bancos centrais foi combinada ou uma espécie de pacto silencioso. Agiram automaticamente, percebendo que o problema se alastrava?

MEIRELLES: Existe um pouco dessas coisas. Existem reuniões regulares na Basiléia (Suíça), e, na minha opinião, é uma grande evolução da administração da política monetária internacional. Além disso, existem algumas reuniões específicas e contatos telefônicos. Existem visitas específicas, hoje, nos Estados Unidos. No passado, o Brasil recebia essas visitas para entender o que estava acontecendo. Em 2003, quando eu assumi (o BC), era comum virem aqui. Agora, nós vamos lá para ver o que está acontecendo.

Os bancos no Brasil estão preparados para suprir essa demanda maior por crédito por causa da liquidez menor no mercado internacional?

MEIRELLES: O sistema financeiro está preparado para crescer, sim, e tem crescido a taxas elevadas nos últimos anos (acima de 30% ao ano). Se você olhar a taxa de crescimento de empréstimos para empresas no último ano, são taxas bastante elevadas, exatamente porque o sistema brasileiro está repondo, substituindo crédito externo. Não se deve dizer que a autoridade (BC) não tem, eventualmente, de intervir para melhorar as condições de liquidez geral do mercado. O BC adotou o leilão de venda com recompra simultânea de câmbio e, logo em seguida, medida de liberação de compulsório.

Essa ação no compulsório ajudou muito mais os pequenos e médios bancos. Isso significa que, por enquanto, a liquidez que existe no mercado brasileiro é suficiente?

MEIRELLES: Sim, essa é a nossa avaliação no momento. O BC continua monitorando a situação e está preparado para tomar todas as medidas necessárias, a qualquer momento, para assegurar o bom funcionamento do mercado de crédito no Brasil.

A crise vai levar a uma retração da atividade econômica no Brasil, num momento em que existe a preocupação de a demanda estar superaquecida no país. Ao mesmo tempo surge a preocupação em não deixar o crédito diminuir. Não há uma contradição?

MEIRELLES: Em primeiro lugar, uma certa desaceleração no crescimento do crédito no Brasil é normal por causa de diversos fatores, como liquidez externa, queda do comércio internacional e política monetária. O crédito de linhas externas, tendo uma parada súbita, gera problema de liquidez específico que tem de ser endereçado. Ou seja, o comércio exterior brasileiro tem de ser financiado. Segundo, quedas abruptas de liquidez geram disfuncionalidades.

A nossa parte mais sensível nesta crise, então, é o crédito?

MEIRELLES: O crédito é o canal de transmissão mais importante da crise americana para outros países. O segundo canal é do comércio exterior. À medida que as economias americana e européia desaceleram, têm menos importação, e as exportações (para lá) tendem a diminuir também.

Então é nessa área que é preciso agir...

MEIRELLES: Exatamente. É o que o BC está fazendo, o que os bancos oficiais, por determinação do presidente da República, estão fazendo. E o sistema privado nacional também está fazendo sua parte.

Essa redução no crédito já está tornando mais difícil, para as empresas brasileiras, rolar dívidas antigas?

MEIRELLES: Existem informações de bancos internacionais de que, de fato, podem não renovar suas linhas em determinados vencimentos. Evidentemente, as instituições tomadoras já começam a tomar providências para isso, que foi uma das razões do aperto da liquidez porque precisavam fazer caixa. Por isso, foi importante o anúncio do BC de que não permitiria iliquidez em mercados específicos e garantirá o bom funcionamento dos mercados.

O fato de o BC ter feito leilão de dólar com compromisso de recompra é sinal de que acredita que a crise já atingiu o fundo do poço?

MEIRELLES: Não há dúvida de que há uma expectativa de que a situação vai se normalizar. Essas operações têm garantia absoluta, na medida em que há venda (de dólares), reais são depositados no BC, e na recompra, esses reais são usados para comprar os dólares.

Há um consenso no mercado de que o câmbio mudou de patamar no Brasil, não volta para R$1,70, R$1,60. Qual é sua avaliação e que reflexos haverá na inflação?

MEIRELES: Nós, o BC, não fazemos previsão de taxa de câmbio. Levamos em conta as previsões de mercado. Fazemos previsões, sim, de inflação, baseadas nas condições dos cenários de mercado, e também previsões do setor externo, como no caso de balança comercial, contas correntes e crescimento.

A crise trouxe outro componente, que é a questão da falta de confiança: ela está localizada no sistema financeiro americano ou já ultrapassou essa fronteira?

MEIRELLES: Isso está localizado, principal e primordialmente, no sistema financeiro americano. Em segundo, em bancos de outros países, sobretudo na Europa, que têm exposição direta ao mercado imobiliário de alta alavancagem nos EUA.

O pacote que o governo americano está negociando com o Congresso, de US$700 bilhões, terá força para que as pessoas saiam do pânico?

MEIRELLES: Hoje, as intervenções do Fed têm resultado inequivocamente positivo, no sentido de que o Fed está preparado para prover liquidez ao mercado e, portanto, já ultrapassamos a fase de reconhecimento da gravidade da crise. Hoje se sabe que é uma crise severa. A segunda parte é a preocupação com a solvência das instituições, que é o alvo do plano de recuperação de ativos.

A crise atingiu em cheio bancos de investimentos, e não os comerciais. O sistema financeiro entrará numa nova era?

MEIRELLES: Sim. Existe, por exemplo, uma grande diferença entre a estrutura dos sistemas financeiros americano e brasileiro. Por exemplo, no Brasil, os bancos de investimentos estão sujeitos às normas prudenciais e à supervisão do BC. Nos EUA, eles não tinham normas de fiscalização e supervisão das autoridades monetárias, funcionavam com alto nível de alavancagem e sem depósitos à vista. Esse modelo já mostrou seu esgotamento.

Essa crise pode ter um lado bom, que é o de ajudar a calibrar o crescimento econômico do Brasil. O senhor concorda com isso?

MEIRELLES: O equilíbrio entre demanda doméstica, oferta e contribuição do setor externo, evidentemente, é uma função básica do BC, por meio do ajuste de política monetária. O BC sempre esteve e estará atento a isso e tomando as medidas necessárias.

O senhor sempre disse que 2003 foi seu pior momento à frente do BC. Agora é pior?

MEIRELLES: 2003 era pior. 2003 era uma crise brasileira, uma crise nossa, e tínhamos poucos recursos para enfrentá-la. Hoje é uma crise externa, e temos recursos disponíveis, à medida que o país tem fundamentos sólidos e, portanto, tem melhores condições.