Título: É a política, estúpido!
Autor: Feres Júnior, João e Mattos, Fernando
Fonte: O Globo, 05/10/2008, Opinião, p. 7

Arecente rejeição do pacote de ajuda econômica aos bancos pelo Congresso dos EUA (aprovado finalmente na sexta-feira, depois de várias emendas) revela uma faceta pouco explorada da atual crise: a política. Trata-se de uma crise profunda que expõe as várias interdependências do sistema capitalista global. Por outro lado, a lógica de financiamento do capital industrial tornou-se completamente subsidiária da lógica especulativa autista do capital financeiro.

Sobreposta à atual crise econômica há a crise política de legitimidade do sistema mundial de poder. Essa começou a se mostrar com a reação dos EUA ao 11 de Setembro, logo seguida pela malfadada invasão do Iraque. Entretanto, o que se revela agora não é a política como poder militar assimétrico, mas sim a conexão entre a política doméstica americana e o sistema capitalista global. Esse sistema, dominado pela lógica financeira, depende em grande parte de instituições americanas, seja devido ao gigantismo da economia americana e de sua penetração no mundo, ou devido ao fato de o sistema financeiro internacional ter os títulos da dívida pública do Tesouro americano como recurso de última instância.

Em períodos não eleitorais, a conexão Estado-mercado financeiro nos EUA gera pouca tensão, o que permitiu às instituições financeiras agir com extrema liberdade, como demonstrou o crescimento vertiginoso dos empréstimos subprime, o elemento detonador da crise. Nesses períodos a lógica do capital fica longe da do eleitor, e a classe política é facilmente cooptada pelos interesses da finança. Mas no período eleitoral a política desperta, pois aproxima-se o momento da repactuação entre povo e representantes e esses últimos têm que se mostrar, de alguma forma, representativos. É exatamente essa justaposição entre crise econômica mundial e eleição nos EUA que define a particularidade do atual momento. Os republicanos não podem parecer intervencionistas aos olhos de seu eleitor, ainda que não raro pratiquem um keynesianismo de guerra. Resultado: 133 deputados republicanos votaram contra o pacote do governo do mesmo partido. Do outro lado, 95 democratas não quiseram se associar a um pacote eleitoralmente arriscado. (Na sexta-feira, foi aprovado por 263 contas 171 votos).

Por trás da rejeição de segunda-feira está um aspecto institucional do sistema político americano para o qual precisamos atentar. A incapacidade de grande parte dos deputados norte-americanos de aprovar o pacote na segunda-feira não se devia simplesmente ao fato de que ele é impopular, mas sim ao caráter distrital puro do sistema eleitoral daquele país, combinado, é claro, com a iminência da eleição. Descontando os republicanos ideólogos do Estado mínimo, a maioria dos refratários foi presa do voto distrital que os faz representar não a sociedade entendida como processo histórico de intercâmbio de idéias, mas sim os interesses mais imediatos de seu eleitorado, tomados como indivíduos isolados. Em suma, a solução da crise mundial esbarrou no voto distrital americano.

JOÃO FERES JÚNIOR é professor de ciência política do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). FERNANDO MATTOS é pesquisador visitante do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea- RJ) e professor licenciado da Pontifícia Universidade Católica-Campinas.