Título: Calotas e finanças
Autor: Buarque, Cristovam
Fonte: O Globo, 11/10/2008, Opinião, p. 7

Temos assistido, nestes dias, ao derretimento simultâneo das calotas polares e do sistema financeiro global. A causa dos dois derretimentos é a mesma. A culpa de ambos é de políticos sem visão nem liderança e de banqueiros irresponsáveis, e também de um sistema que empurra o processo econômico para a sua própria falência. Os bancos são culpados por causa da leviandade com que manejaram depósitos e empréstimos, com base em moeda podre; os governantes, porque deixaram que isso chegasse até a falência.

Por trás da ciranda financeira estão o setor produtivo e o consumidor, um querendo vender mais, outro gastar mais. A voracidade de consumo e produção empurra o sistema bancário para o crédito fácil, sem bases sólidas. Buscando lucros excessivos, os bancos criam moeda sem sustentação e fazem empréstimos de risco; querendo mostrar taxa de crescimento, os governantes incentivam essa irresponsabilidade. Apesar dessas causas, as saídas propostas continuam concentradas no sistema financeiro: injeções de dinheiro público, como forma de evitar a quebra dos bancos. Nenhuma proposta que reoriente o rumo ou o funcionamento da economia.

A mesma lógica absurda prevalece no tratamento do problema ecológico. Assim como o sistema financeiro, as geleiras também estão derretendo. Mas não enfrentamos as causas do problema: a voracidade da produção e do consumo.

Entretanto, os derretimentos podem ser um alerta para juntar os problemas financeiro e ecológico, e redefinir os propósitos e prioridades para uma economia saudável, sustentável, sem riscos financeiros nem ecológicos. Isso exige mudar tanto o tipo de produtos que definem riqueza quanto o perfil da sua distribuição entre classes e gerações.

Foi graças à crise de 1929 que o Brasil reorientou seu modelo exportador-agrícola, criando uma nova economia industrial. Em 1945, o país preferiu gastar seus recursos na importação de bens de consumo. Na crise do petróleo de 1973, que coincidiu com o início da revolução na informática, o Brasil investiu na alternativa do etanol, mas não mudou sua matriz de transportes, baseada nos veículos rodoviários, nem de industrialização, baseada no automóvel; e em vez de investir na educação e na ciência da computação, preferiu a reserva de mercado para produzir computadores ineficientes, com tecnologia e componentes importados.

Esta crise de 2008 nos traz outra oportunidade, desde que consideremos: a) formular regras que definam responsabilidades e limites à manipulação financeira e monetária, combatendo tanto a irresponsabilidade dos banqueiros que quebram bancos quanto dos governantes que criam inflação; b) deixar de concentrar o problema na conjuntura financeira, buscando alternativas na base da crise, que é o sistema produtivo ecológica e financeiramente depredador; c) orientar o processo produtivo para setores que não sejam depredadores nem forcem a máquina de crédito além dos seus limites; d) perceber que o setor mais importante é o dos investimentos públicos, uma espécie de keynesianismo socialmente orientado e fiscal, financeira e monetariamente responsável; e) dar máxima prioridade aos investimentos em educação, ciência e tecnologia, setores dinâmicos e de baixo custo, que não necessitam de crédito ao consumidor, são ecologicamente limpos e representam o verdadeiro capital do século XXI.

O Brasil perde oportunidades desde a cana-de-açúcar, o ouro, o café, a borracha, a indústria. Mais uma oportunidade surgiu provocada pelo duplo derretimento dos bancos e dos pólos, simultaneamente à possibilidade de sermos um centro produtor de energia.

Falta escolher o modelo de produção ("o quê" e "como" produzir) do futuro; que não dependa tanto de créditos para o consumidor privado, não destrua o meio ambiente nem aumente a concentração de renda. Um modelo que seja baseado em investimentos sociais, com respeito à ecologia e distribuindo os benefícios do progresso, nesta e nas próximas gerações.

CRISTOVAM BUARQUE é senador