Título: Vinte anos depois...
Autor: Paulo Delgado
Fonte: O Globo, 12/10/2008, Opinião, p. 7

Símbolo do mais consistente e longo período democrático da História brasileira, a Constituição de 1988 fez vinte anos sem saber bem seu destino. Adequada e harmonizada ao momento político, social e histórico da época, não foi convocada por poder arbitrário. E permitiu ao país sete períodos presidenciais em vôo civil com controlada turbulência institucional. Mas não assegurou acumulação de energia capaz de elevar, de forma consistente, a autonomia e o progresso da nação.

Concebida para o predomínio da sociedade sobre o Estado, é hoje usada para regular a vida da sociedade. O que não está explícito é explicitado por leis delegadas infraconstitucionais. Que ultrapassam, todo dia, por medidas provisórias, meros atos administrativos, portarias, decretos, súmulas a reserva legal de poder e autoridade que todo cidadão pressupunha ter sob o manto da Constituição cidadã. Um barulho legiferante, verdadeiro enfrentamento, que não cessa de inovar na regulação, intimidação, fiscalização, documentação, como se não houvesse vida útil fora das leis orgânicas e da sede micro-regulatória dos governos.

O Ministério Público - Ministério do Público bem dizendo -, inovadora instituição, não percebe que perde sua autonomia constitucional quando quer mais do que exercer suas gigantescas funções de procurador da sociedade, guardião da justiça e da democracia. Se busca fazer-se essencial e tiver prerrogativas de poder, inunda o Estado e a sociedade com seu protagonismo, atraindo tudo para a sua órbita. Quer ter independência institucional, ser árbitro da legitimidade da lei e julgador do seu conteúdo, invadindo doutrinariamente a competência da vida civil e de outras instituições para também reconhecer, respeitar, conviver e defender seus direitos . Ao contrário de ser interpretado pela Constituição, passou a interpretá-la, produzindo uma competição aberta com os poderes da União que acabou por torná-lo, hoje, membro e parte da sua hierarquia.

Instrumento para pôr o Estado a serviço da sociedade, a Constituição não começa com a definição dos poderes e sua arquitetura. Começa dizendo que os objetivos e princípios constitucionais e do Estado devem estar a serviço dos objetivos sociais, individuais, econômicos e culturais da sociedade. Assim, não deveria corresponder ao sentido do texto a convicção generalizada de que a ordem só pode ser ditada pela autoridade, quando, na verdade, ela é um atributo organizatório, fundada na autonomia do indivíduo que, com liberdade, organiza-se, trabalha, prospera, cumpre seus deveres .

Prevendo sua própria revisão em cinco anos, a Constituição abriu-se a uma agenda constituinte permanente. Governar é revisar a Constituição. Isso porque ela é vista como um programa de governo, feito por coalizões políticas do passado recente, e não a síntese da visão universal dos brasileiros sobre o país.

Assim a Constituição grudou na sociedade, nada sendo exterior a ela. Movida por uma certa fantasia social, é um texto da arte de vitral. De caligrafia trêmula, expressão de um tempo de histeria social e política. Mosaico de interesses diversos e conflitantes, consagrou, todavia, um modelo único de cidadão, ativista, engajado, mobilizado. Afirmou o direito à diferença mais do que o direito à igualdade. Introduziu tantos intermediários entre o povo e o Estado que levou o país à sobrepolitização de tudo. Só pela política a nação, a natureza, a cultura, a economia se expressam. Sugere e estimula a correlação direta entre a cidadania e o Estado sem espaço para o autêntico pluralismo e a autonomia da vida social.

Nada, no entanto, foi escrito com enfado ou falta de afeição pelo Brasil e pelo mundo. É preciso, no entanto, não vê-la mais polarizada. E cumpri-la pela ótica da sociedade emancipada, como foi concebida.

PAULO DELGADO é sociólogo e foi deputado federal constituinte (PT-MG). E-mail: pauloggdelgado@terra.com.br

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