Título: Com solução
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Fonte: O Globo, 14/10/2008, Opinião, p. 6
As bolsas de valores reagiram ontem com fortes altas (a Bovespa subiu mais de 14%; na Ásia e na Europa a valorização também foi expressiva, superando 10% em média; e em Wall Street, 11%, mesmo sendo meio-feriado nos Estados Unidos). A mudança de humor sem dúvida está relacionada às reuniões, no último fim de semana, de governantes dos países mais atingidos pela crise financeira, principalmente na Europa. Na zona do euro, os depósitos do público e as dívidas dos bancos passaram a ser garantidos independentemente da solvência das instituições financeiras, e isso afastou do horizonte o temor de uma quebradeira generalizada. Ao todo, o pacote europeu reúne a cifra gigantesca de um trilhão de euros.
Afastar o risco de uma depressão se tornou tarefa imediata para os países desenvolvidos, e para tal é necessário estancar a crise de confiança que poderia destruir os sistemas financeiros ao redor do mundo. Em uma crise dessas dimensões poderiam sucumbir não só as instituições alavancadas em operações especulativas com derivativos, mas também aquelas que se portaram dentro das margens conservadoras de risco. Dessa forma, somente uma ação articulada voltada para os sistemas financeiros como um todo pode servir de antídoto para esse ambiente de desconfiança.
No Brasil, o Banco Central tem agido de maneira exemplar, buscando desobstruir os canais de intercomunicação dos mercados financeiros. Ainda que as instituições financeiras locais não estivessem ameaçadas por perdas decorrentes de operações especulativas no exterior, a crise de confiança acabou afetando o crédito e o movimento do câmbio no país. As autoridades monetárias devolveram então para o sistema financeiro recursos dele recolhidos via depósitos compulsórios, e no câmbio aumentou a oferta de dólares, aproveitando as reservas acumuladas pelo BC. Ontem, na esteira da recuperação das bolsas no mundo, a moeda caiu 7%.
O ajuste dos sistemas financeiros exigirá tempo, e somente quando a poeira baixar será possível visualizar o impacto dessa crise sobre as cadeias produtivas. Mas, ao menos agora, começou a se dissipar a terrível sensação de que estaríamos diante de uma crise sem solução.
Na verdade, a reunião de líderes europeus no domingo, em Paris, coordenada pelo francês Nicolas Sarkozy, atual presidente da União Européia, foi a senha para a recuperação mundial dos mercados na segunda. Ao adotar a proposta inglesa do primeiro-ministro Gordon Brown, de se injetar dinheiro público diretamente na compra de ações de bancos em dificuldades, sob algumas condições, a Europa parece ter dado um tiro certeiro no grave problema de solvência que tem paralisado o crédito em escala planetária - e compensou a relativa frustração com os encontros em Washington de G-7, G-20, Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial, que não produziram um plano objetivo, apenas acenos de boas intenções.
No final da semana passada, os próprios Estados Unidos já admitiam seguir o mesmo caminho - mais eficaz, tudo indica, que a complicada idéia do secretário do Tesouro Henry Paulson de se adquirir títulos lastreados em hipotecas podres e micadas nas carteiras de incontáveis instituições financeiras.
Mas, dada a profundidade da crise, não se deve esperar que haja uma bala de prata que possa debelá-la. Talvez leve algum tempo para se ter a dimensão exata do volume de papéis encalhados nas carteiras de bancos entre Estados Unidos, Europa e Ásia, responsáveis pelo congelamento do crédito mundial e pela corrida desenfreada do dinheiro em busca da segurança dos títulos do Tesouro americano. Portanto, aconselha-se não considerar que o dia de ontem tenha marcado o fim da crise.
É bem-vinda, assim, a intenção do governo, anunciada ao GLOBO pelo ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, de fazer cortes onde for necessário, para impedir ao máximo que o desaquecimento mundial cause muitos estragos na economia brasileira. O ministro não descarta sequer o adiamento de programas sociais.
Mas soa estranho que Paulo Bernardo se mostre tão reticente em se referir a medidas concretas, alegando que o governo "não pode ir atrás de boataria de mercado". Ora, o que tem acontecido no Brasil e no mundo são fatos objetivos, com ações, juros e câmbio sinalizando o perigoso fenômeno de empoçamento de liquidez em todo o planeta.
Uma explicação plausível para o excessivo cuidado é que o governo Lula pode estar agindo como FH em 1998 e Sarney e Ulysses em 1986, quando, por causa do calendário eleitoral, retardaram ações imprescindíveis contra a implosão do câmbio fixo do real e o esgotamento do Plano Cruzado. FH esperou ser reeleito para deflagrar a desvalorização da moeda em janeiro de 1999, e instituir o câmbio flutuante; enquanto o presidente José Sarney e a eminência parda do seu governo, Ulysses Guimarães, aguardaram o PMDB ganhar as eleições estaduais de novembro de 86 para só então acabar com o congelamento de preços e baixar um pacote fiscal. Condicionar decisões técnicas a questões político-eleitorais implica riscos, ainda mais numa crise mundial de proporções inéditas em quase um século.