Título: Muito além da atividade principal
Autor: Frisch, Felipe
Fonte: O Globo, 18/10/2008, Economia, p. 31

80 empresas têm mais da metade do lucro em operações financeiras, e mercado teme especulação.

Oinício da temporada de balanços do terceiro trimestre das empresas do país desperta em investidores e analistas receio do que pode vir por aí. Uma forma de identificar companhias candidatas a problemas é verificar nos últimos balanços o peso dos resultados financeiros - não ligados à sua atividade principal - em seu lucro líquido. A ameaça é que esses ganhos sejam fruto de excesso de especulação e que, com o agravamento da crise global, possam se transformar em perdas para os acionistas, alertam especialistas. Um levantamento inédito feito pela consultoria Economática a pedido do GLOBO mostra que, das 318 empresas que apresentaram balanços no primeiro semestre do ano, 80 obtêm mais da metade do seu lucro líquido em operações financeiras.

E mais: dessas, 35 têm resultado financeiro (ou receita financeira líquida) até mesmo superior ao lucro líquido. Ou seja, se não fosse o ganho com atividades não-operacionais, poderiam ter sofrido um prejuízo. O receio dos especialistas aumenta após grandes grupos, como Aracruz, Sadia e Votorantim, terem anunciado significativas perdas com operações no mercado financeiro devido à alta recente do dólar: de 19,22% apenas no terceiro trimestre, para R$1,904 no fim de setembro. Na última sexta-feira a moeda americana fechou num patamar ainda mais elevado: R$2,12.

Ganho financeiro alto "é preocupante"

Para alcançarem ganhos financeiros tão acentuados antes, essas companhias podem ter tomado posições arriscadas no mercado, como a aposta na queda do dólar na Bolsa de Mercadorias & Futuros (BM&F) ou em papéis do mercado de ações. Analistas ressaltam que, como o mercado virou do meio do ano para cá, a boa situação dessas empresas até então também pode ter se invertido.

Não à toa, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) - entidade que regula o mercado de capitais brasileiro - editou na última sexta-feira nova regra sobre o assunto. Exige que as companhias de capital aberto publiquem informações mais detalhadas sobre os instrumentos financeiros derivativos (contratos que usam como referência outros ativos, apostando na queda ou na alta dele) utilizados, já no balanço do terceiro trimestre. A autarquia pede ainda que as companhias divulguem análises dos efeitos de três cenários possíveis em suas operações financeiras, considerando a alta ou a baixa do dólar, por exemplo.

O levantamento feito pela Economática chama atenção por ter entre as empresas com maiores resultados financeiros no primeiro semestre companhias como Sadia, Aracruz e Votorantim Celulose e Papel - de grupos que tiveram declaradamente problemas com a alta recente do dólar -, avalia Fernando Exel, presidente da consultoria. Outras grandes que encabeçam a lista dos fortes resultados financeiros são Klabin, CSN, Light, Gerdau, Embraer, Braskem, Usiminas, Cemig e Gol.

Quase todas são conhecidas por terem fortes áreas financeiras, algumas semelhantes a tesourarias de bancos. O problema é quando essas áreas começam a ganhar importância nos balanços no lugar do ganho operacional. É aí, segundo analistas, que mora o perigo de as empresas se arriscarem além do uso das operações financeiras para proteger seus patrimônios e receitas das oscilações do câmbio ou das matérias-primas.

- Quando o resultado financeiro é mais da metade do lucro líquido, é preocupante. Aí, a empresa sai do operacional e vira trabalho de mesa (de tesouraria de banco). Companhias com históricos assim podem ter tido problemas no último trimestre - avalia Rafael Moysés, gestor de Carteiras da corretora Umuarama.

É importante lembrar, no entanto, que ter um forte resultado financeiro não é garantia de que a empresa está alavancada (investindo mais do que deveria para apenas se proteger). A analista Luciana Leocadio, da corretora Ativa, diz que uma parte do ganho pode ser porque elas têm dinheiro em caixa. Este recurso pode estar aplicado em operações de renda fixa, atreladas à taxa de juros Selic, em 13,75% ao ano. E esse ganho entra nos resultados financeiros.

Também entram em resultados financeiros outros ganhos e despesas, como os obtidos com imóveis, ações, títulos públicos e privados, além de derivativos, usados por algumas empresas para especular. Fazem parte dessa receita juros pagos em financiamentos e variações do câmbio.

- Um resultado financeiro forte pode ser sinal de que a empresa tinha dívida em dólar sem hedge (operações para proteção). Enquanto o dólar caía, ela tinha receita financeira, porque a dívida ficava mais barata. Agora que o dólar parou de cair, a empresa apresenta perdas por não ter se protegido - diz Luciana.

Para entender a caixa-preta da origem dos ganhos e das perdas financeiras das companhias é necessário ler as notas explicativas dos balanços anuais ou trimestrais. Luciana lembra que, mesmo assim, nem sempre é possível prever o que vai acontecer:

- A Sadia, por exemplo, mudou a posição que tinha em 30 de junho passado, se desenquadrou totalmente nesse período. No caso da Aracruz, a questão foi o tipo da operação. Normalmente, a empresa não detalha os contratos que fez - diz.

Para Patricia Branco, sócia da gestora de recursos Global Equity, um indicador relevante para medir quanto a empresa está se arriscando é a relação entre a dívida e o patrimônio.

- É preciso comparar com o nível de endividamento dos seus pares (as empresas concorrentes) e ver se foge muito da média do setor - explica Patricia Branco.