Título: O que é mais importante?
Autor: Camata, Rita
Fonte: O Globo, 23/10/2008, Opinião, p. 7

No dia 5 de outubro de 1988 o presidente da Assembléia Nacional Constituinte, deputado Ulysses Guimarães, encerrava os trabalhos afirmando que: "...Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora. Será luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados. É caminhando que se abrem os caminhos. Ela vai caminhar e abri-los. Será redentor o caminho que penetrar nos bolsões sujos, escuros e ignorados da miséria. Recorde-se, alvissareiramente, que o Brasil é o quinto país a implantar o instituto moderno da seguridade, com a integração de ações relativas à saúde, à previdência e à assistência social, assim como a universalidade dos benefícios para os que contribuam ou não, além de beneficiar 11 milhões de aposentados, espoliados em seus proventos."

Marca verdadeiramente cidadã imprimida à nova Carta foi garantir um sistema de seguridade social capaz de levar aos mais humildes direitos sociais nas áreas de saúde, previdência e assistência social.

Em 20 anos o sistema propiciou atendimento médico, inclusive de alta complexidade, a milhões de brasileiros; assegurou proventos de aposentadoria e levou políticas assistenciais a todos aqueles que viviam à mercê da caridade alheia.

Para cobrir as despesas, a Constituição previu fontes específicas de financiamento: as contribuições sociais. Desta forma, a sociedade daria sua cota para o sistema que propunha combater as desigualdades sociais e oferecer direitos na saúde e na previdência.

A proposta de Reforma Tributária em tramitação na Câmara dos Deputados suprime tais contribuições, à exceção da contribuição previdenciária. Com o objetivo de simplificar e reduzir o número de tributos, a PEC destina 38,8% do novo superimposto, o IVA-Federal, para cobrir as despesas do sistema. De acordo com o Ministério da Fazenda, esse percentual significa o mesmo aporte arrecadado em 2006.

Ora, se os recursos estão garantidos, se apenas trocaremos 6 por meia dúzia, qual o problema da substituição? Naturalmente, a forma de financiamento da Seguridade não é uma questão meramente de nomenclatura - se a arrecadação é por imposto ou por contribuições sociais. Não é também uma discussão acadêmica, como a de um dilema conceitual. Há implicações sérias nessa mudança, as quais preocupam todos os que defendem a Seguridade Social e seu modelo de financiamento.

Apesar das arrecadações recordes em contribuições sociais, quem acompanha a implantação dessas políticas sabe que ainda faltam recursos. Em 2007, por exemplo, obtiveram-se quase R$350 bilhões, enquanto foram gastos em saúde, previdência e assistência social apenas R$286 bilhões. Ou seja, mesmo os recursos sendo carimbados, só podendo ser utilizados na Seguridade, uma parcela considerável foi, direta ou indiretamente, utilizada para outros fins.

Educação, segurança, agricultura, justiça, obras em infra-estrutura, são também ações fundamentais para o desenvolvimento econômico. Mas para evitar que a Seguridade disputasse recursos com essas ações, o constituinte inseriu tipos diferentes de fontes de financiamento na Carta - contribuições sociais para a Seguridade, impostos para os demais programas de governo.

Se abrirmos mão dessa separação permitiremos a seguinte disputa: o que é mais importante? Saúde pública ou a modernização de um porto? Pagamento de benefícios previdenciários ou mais estradas? Mesmo com a garantia de uma parcela do IVA-Federal isso pode implicar, no futuro, problemas para defender novos recursos para equilibrar a Previdência Social.

Desta forma, mesmo atendendo ao objetivo do governo de simplificar o sistema tributário, é importante manter a atual pluralidade de fontes e não comprometer, no futuro, a luta pela integralidade da Seguridade, e de mais financiamento para a Saúde, a Assistência e a Previdência Social.

A reforma é necessária, mas devemos analisar seu conteúdo com cautela. Não podemos permitir que o Sistema de Seguridade Social, uma conquista de todos os brasileiros, seja desmantelado pela supressão do dispositivo constitucional que determina a pluralidade de fontes.

RITA CAMATA é deputada federal (PMDB-ES).