Título: Fernando Gabeira
Autor: Otavio, Chico
Fonte: O Globo, 26/10/2008, O País, p. 14

Os dois episódios ocorreram em menos de 24 horas, na reta final do segundo turno. Na terça-feira, Washington Luiz de Souza Carlos, morador de Antares, um dos loteamentos mais pobres da Zona Oeste, cobrou de Fernando Gabeira os planos para a região. A resposta caminhava para a receita tradicional, com promessas de encher os olhos, até que o candidato emendou:

- Se não conseguirmos nada porque não há recursos, venho para cá, te abraço e digo: olha, não conseguimos, mas vamos tentar de novo.

Naquela noite, Gabeira dormiria em Bangu. O gesto, interpretado como tentativa de priorizar a Zona Oeste, onde o candidato tem dificuldades, excitou a mídia. Jornalistas chegaram a ficar em motéis de beira de estrada para acompanhá-lo. No dia seguinte, ao sair da casa do militantes tucano que o acolheu, Gabeira foi cercado por jornalistas afoitos. Todos queriam saber o que sentira ao passar a noite na região tão distante da sua Ipanema, na Zona Sul:

- Dorme-se do mesmo jeito - resumiu, encerrando o assunto com um riso curto.

Quatro meses depois, o candidato do PV chega ao fim da campanha desmontando o papel de político tradicional. Entre seguir o figurino ou dizer o que pensa, Gabeira preferiu ser Gabeira. Mais do que a preocupação em manter a cidade limpa, a transparência na divulgação dos gastos e a rejeição aos compromissos que comprometessem o futuro governo, a maior diferença de Gabeira na luta pelo voto dos cariocas foi a sua sinceridade cortante.

Alguns prazeres, como andar de moto, freqüentar a natação e almoçar no fim de semana com os amigos, tiveram de ser abandonados. No caso da moto, Gabeira temia que um pequeno acidente repercutisse na mídia com ares de tragédia. Mas outros hábitos não foram abandonados. Um deles foi comer bem - pratos leves, à base de vegetais e peixe - e na hora certa.

- Ele é metódico. Sempre almoça e bebe água, enquanto sou um largado - conta o deputado estadual Luiz Paulo Corrêa da Rocha (PSDB), seu candidato a vice e principal interlocutor no mundo da política tradicional.

Para mergulhar na campanha, Luiz Paulo parou de caminhar em torno da Lagoa Rodrigo de Freitas, sua solitária atividade física. Já Gabeira não abandonou totalmente a piscina. No dia seguinte ao segundo turno, nadou no Flamengo, gesto fartamente mostrado pela mídia em fotos que o exibiram de sunga. Na manhã de sexta-feira, dia do debate final, caiu novamente na piscina para relaxar. E, mais de uma vez, interrompeu a agenda para sessões de shiatsu.

O candidato tentou manter outros hábitos. Certo dia, saiu a pé de casa com uma das filhas, Tami, para comer uma pizza. Seus assessores o convenceram que, numa disputa tão acirrada, marcada algumas vezes por golpes abaixo da linha da cintura, tanta independência assim não era conveniente. E Gabeira, desde então, passou a andar protegido por seguranças.

Em cinco meses de convívio com o candidato, Luiz Paulo teve de aprender a enfrentar outro tabu para os políticos: a pontualidade. Gabeira quase nunca atrasa. Na quarta-feira, depois de dormir em Bangu, ele chegou na hora marcada para um encontro com bispos e pastores evangélicos na Sociedade Musical 10 de Maio, em Santa Cruz. O organizador, bispo Hermes Fernandes, previa 300 pessoas. Quando o furgão de Gabeira encostou na porta do clube, havia 12 pessoas no auditório.

- As pessoas estão ligando para avisar que já vão chegar - disse o bispo, constrangido, enquanto puxava Gabeira para uma conversa.

O auditório só lotou quando Gabeira chegava ao fim do discurso. Mas todos puderam assistir ao candidato, de sorriso amarelo, ser comparado a Moisés pelo pastor americano Martin Scott, da Pioneer Church (igreja pioneira):

- Ele (Moisés) se inquietou muito com a pobreza e a escravidão em que o povo se encontrava na época. Atravessou uma época sendo mal compreendido, uma temporada de exílio, mas voltou para o seu povo. Ele ficou relutante e teve dificuldade para aceitar aquele chamado.

Para o economista Pedro Cavalcanti, um dos coordenadores da campanha, Gabeira está longe de ser mal compreendido. Ele sustenta que uma eventual vitória consagraria um estilo "nunca antes visto na política fluminense". Aos 64 anos, 26 deles passados em comitês eleitorais, Pedro diz que foi a campanha mais diferente de que participou:

- O comportamento de Gabeira, quando tinha 4% nas pesquisas, é o mesmo de agora, quando está a dois dias das eleições (na sexta). Não se abalou e nem mudou o seu estilo.

No comitê, o papel de Pedro é um dos mais árduos: dizer não. Muitas vezes, teve de dar essa resposta a candidatos a vereador que, derrotados no primeiro turno, o procuravam para trocar apoio por ajuda financeira para saldar as dívidas de campanha. Na quinta-feira, um dos oito integrantes do pequeno staff do quartel-general de Gabeira procurou o coordenador de celular à mão. Do outro lado da linha, a promoter Liége Monteiro pedia bandeiras.

- Responda que não temos mais nada. Acabou.

A candidatura de Gabeira foi sacramentada há cinco meses, mas Neila Tavares, sua mulher e também coordenadora da campanha, conta que a idéia surgiu muito antes, quando o marido teve de socorrer uma nora acidentada, que fora levada para o Hospital Municipal Miguel Couto:

- Ele passou a noite empurrando maca, angustiado, vendo aquelas pessoas no chão. Isso o tocou muito. Naquele momento, achou que precisava fazer alguma coisa.

Gabeira garante que seus planos eram outros. Como fizera em ocasiões anteriores, inauguradas pelo lançamento de "O que é isso, companheiro?", se preparava para mais uma autocrítica escrita, talvez um de seus maiores prazeres. Se, no primeiro livro, o autor tratara da sua passagem pela luta armada e, nos dois seguintes, a experiência do exílio ("Crespúsculo do macho") e da volta ao Brasil ("Entradas e Bandeiras"), ele agora quer ir bem mais longe.

- O livro vai tratar dos meus 50 anos de vida pública, um balanço de meio século. Pretendo apontar os erros cometidos nessa trajetória, das minhas passagens pelo existencialismo, pelo marxismo e pela luta armada. Também vou me interrogar sobre as razões de escolher a política.

Ele também planejava voltar ao jornalismo - "estar nos lugares do mundo onde pudesse fazer alguma coisa" - e prefere tratar de ambos como projetos apenas adiados.

Como o dramaturgo tcheco Vaclav Ravel, ex-presidente da antiga Tchecoslováquia, alçado ao poder depois de ser um dos inspiradores da resistência ao domínio russo, Gabeira se considera o que os americanos chamam de um "político maverick", alguém que tende a ser independente nas suas posições, inconformista.

- Ele me inspirou. Tem uma clareza política que transcende esta polarização ideológica que marcou o século passado. Consegue ver qualidade e defeitos entre a esquerda e a direita - elogia.

Embora identificado como político de esquerda, Gabeira, no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, quase sempre votou de acordo com as teses defendidas pelo governo. Para horror de seus colegas de esquerda, foi favorável à abertura da navegação de cabotagem às embarcações estrangeiras, da revisão de empresa nacional e da quebra do monopólio estatal nas comunicações, na exploração de petróleo e na distribuição de gás canalizado.

Na época, ao ser questionado sobre posições tão polêmicas, respondeu que não tinha "nenhum vínculo com as empresas estatais, mas com uma multidão de cidadãos sem telefone que esperam uma solução para o problema". Chegou a dizer, então, que "a esquerda às vezes não é inteligente e fica ao lado das corporações e não da sociedade".

Hoje, a má vontade da esquerda tradicional com a sua candidatura já não o abala tanto - ele encarou com naturalidade a adesão do PCdoB de Jandira Feghali e do PT de Alessandro Molon ao adversário Eduardo Paes (PMDB). O que realmente incomoda Gabeira é o chamado fogo amigo, disparado das próprias trincheiras pelo menos duas vezes.

Para o candidato que ergue a bandeira da ética e enfrentou Severino Cavalcanti no Congresso Nacional, foi difícil enfrentar as denúncias feitas por um setor dissidente do PV, que vinculavam a sua mulher, Neila Tavares, a uma suposta emissão de notas frias para justificar gastos com campanhas anteriores.

Neila, que está casada com Gabeira há dez anos, mas trabalha com ele há 13, tem uma empresa de informática que atuou na campanha. O casal, irritado com a falta de provas da acusação, foi obrigado a pedir retratação a setores da mídia que divulgaram o caso, atitude que constrangeu Gabeira. No segundo turno, o fogo amigo voltou a incomodar, desta vez provocado por uma mancada do próprio candidato. Sem saber que estava sendo ouvido, chamou a vereadora Lucinha de suburbana e pessoa de mente atrasada.

- Não sei quanto vou gastar de conta telefônica este mês - confidencia Luiz Paulo Corrêa da Rocha, candidato a vice, ao se referir à quantidade de telefonemas que teve de dar até acalmar Lucinha, vereadora mais votada, que estava à beira do rompimento.

- Foi um processo interativo. A minha dificuldade foi fazê-la entender cada palavra no contexto - disse.

Chico Otavio

Um governo eletrônico. Este é o sonho do candidato Fernando Gabeira caso seja eleito. E essa experiência multimídia e interativa ele levou para sua campanha. Em vez de se cercar de um núcleo político e de práticas clássicas, preferiu a companhia de gente do mundo digital. Por onde andou, esteve sempre ao lado de um jornalista com câmera digital e um dublê de repórter e fotógrafo, que alimentaram uma cobertura online desenhada pelo que chama de seu "webmonster" Fabiano Carnevalle.

É como se Gabeira, além de candidato, fosse o editor-chefe de um site ambulante.

- Às vezes me dá mais felicidade fazer isso do que a própria campanha. Os resultados são maiores como editor-chefe. Chegamos a ficar entre os cem mais acessados do YouTube - diz.

O candidato desce do carro na porta de casa, após uma jornada de um dia inteiro de campanha, e a primeira pergunta ao jornalista Marcos Veras e ao cinegrafista Mario Ferreira é se as "fotos e o vídeo já subiram" e estão no ar na internet. Esses dois companheiros de campanha formam, com o motorista Maurício Souza, os três "M"s. Nesse pequeno núcleo que o acompanhou nestes três meses e meio de campanha, só um político tinha presença tão constante, o candidato a vice, Luiz Paulo Corrêa da Rocha, que cuidava da ligação de Gabeira com o mundo político tradicional.

E tradicional não é a palavra que ele quer ver vinculada a seu governo. Gabeira diz pretender informatizar todo o trabalho na prefeitura, com a reformulação radical do portal, que será a base de seu governo, e assim economizar dinheiro e agilizar o contato e a comunicação com a população. Essa é, inclusive, uma das críticas que faz ao atual prefeito, Cesar Maia:

- Minha grande crítica a ele é ter ingressado na internet individualmente, mas não ter embarcado a prefeitura - afirma, referindo-se ao fato de Cesar ter criado um blog pessoal, depois transformado em mailing eletrônico, durante sua gestão.

Mas esse Gabeira web ainda é um político com respostas convencionais para as questões difíceis da gestão administrativa. Quando confrontado a problemas como crise das emergências hospitalares e o crescimento desordenado das favelas, não consegue sustentar o mesmo discurso inovador, que, segundo ele, o transformou no primeiro político a ter um mandado interativo no mundo. Suas propostas se parecem com a de seus adversários. Nessas horas, Gabeira prefere falar de sua história, da defesa da ética e da transparência, e de tudo que representa como símbolo de renovação política.

Gabeira não teve vergonha de ir à Bolsa de São Paulo pedir dinheiro para a campanha, mas se recusou a receber doações das empresas de ônibus e cooperativas de táxi. Em vez de procurar alianças partidárias formais, apostou na mobilização da sociedade. Segundo ele, oito mil voluntários cadastrados em seu site se responsabilizaram por praticamente toda a campanha de rua do candidato. A mulher e coordenadora da campanha, Neila Tavares, afirma que a aliança não gastou nenhum centavo com pagamento de cabos eleitorais.

De acordo com o candidato, que também passou o pires nos bancos Bradesco e Itaú, a Bolsa de São Paulo resolveu abrir o cofre porque acreditou na sua capacidade de renovação:

- Eles tomaram essa iniciativa por causa da característica nacional da campanha carioca. Mostramos que podemos avançar com métodos modernos. Restabelecer a dignidade da política - afirma Gabeira.

Mas nem tudo foram flores, paz e amor. O aperto de mão no então candidato a prefeito de Duque de Caxias, José Zito dos Santos, no primeiro turno, foi alvo de críticas. Gabeira passou pelo constrangimento de ter que se explicar publicamente quando foi cobrado pelo humorista Marcelo Madureira.

No segundo turno, avançando em terrenos que poderiam parecer minados, Gabeira se encontrou com evangélicos - tradicionais opositores de projetos como a legalização da prostituição e o reconhecimento da união civil entre pessoas do mesmo sexo - e também com militares, que enfrentou como militante do MR-8 em fins dos anos 60:

- Fui ao Clube Militar, onde estão os generais que combati no passado, mas no dia seguinte estive com militantes de esquerda.

Com relação aos grupos evangélicos, Gabeira também passou a pregar o discurso da conciliação:

- Sou lutador pela liberdade de religião. Outro ponto de contato: temos o mesmo valor comum, a compaixão. Não aceitamos nenhum tipo de perseguição religiosa.

Já o diálogo com a política tradicional não o envolveu. Para Gabeira, isso é positivo porque garante que, se eleito, não precisará lotear cargos públicos. E afirma que a sua proposta de orçamento vai lhe garantir uma maioria por adesão na Câmara Municipal. Numa campanha marcada por poucas articulações políticas, Gabeira teve que enfrentar o afastamento temporário de seu principal interlocutor, quando Luiz Paulo Correa da Rocha atuou como corregedor da Assembléia Legislativa no processo de cassação do deputado Alvaro Lins.

Muito distante dos corredores empoeirados da Assembléia, num tranqüilo sobrado em Botafogo, o diretor dos programas de TV e rádio de Gabeira, Moacir Góes analisa o desafio de se transformar em imagens o que, para ele, Gabeira representa: o resgate de uma mobilização pela causa política.

- O mais legal é a adesão espontânea das pessoas. A política passou a pertencer a grupos. Gabeira representa certa emoção - diz Góes, que afirma ter parado a sua vida e passado os últimos três meses dentro do Studio Line.

Góes conheceu Gabeira em 2005, na época do escândalo do mensalão, quando convidou o deputado para participar de um debate sobre "Os justos", do escritor e dramaturgo Albert Camus:

- Discutíamos o que era legítimo ou não para se atingir determinados fins.

Com um comitê discreto e apenas cinco Kombis para distribuir o material pelas ruas, Gabeira gastou R$6 milhões nos dois turnos da campanha. A maior parte desse dinheiro foi gasta com os programas de rádio e TV e a internet. Na primeira entrevista sobre a sua participação na campanha, Moacir Góes disse que sua vida, nas últimas semanas, praticamente parou para que ele pudesse dar conta da tarefa.

Ele conta que teve de comprar uma Scooter (pequena motocicleta) para circular mais rapidamente entre o estúdio e a casa, no mesmo bairro.

- Foram três meses passados aqui dentro. Parei a minha vida. A urgência muito grande. No segundo turno, foi uma estréia por dia. No futuro, poderei dizer: eu fiz a campanha do Gabeira em 2008.

É bem verdade, reconhece Góes, que Gabeira demonstrou ser um candidato fácil de ser dirigido. Além de dispensar o teleprompter (um computador que mostra todo o texto que a pessoa deve ler), ele tinha clareza do que queria dizer a cada programa.

- A estrutura do programa era o Gabeira, nosso melhor trunfo era ele. A espinha dorsal era o discurso dele. Sendo assim, eu usava o resto para transformar em imagem aquilo que ele pensava.

Góes é, provavelmente, o mais recente integrante do pequeno núcleo de colaboradores de Gabeira. Sem eles, os 50 anos de vida pública do candidato, marcados pela luta armada, prisão, tortura, exílio, rupturas políticas e outros dissabores, teria sido bem mais difícil. Os amigos mais antigos, Mário Rolas, jornalista de 68 anos, é até hoje uma espécie de anjo da guarda do candidato.

Ambos se conheceram em Belo Horizonte, na "Ultima Hora" de Minas Gerais, em 1962, e desde então nunca mais se separaram. Quando Gabeira esteve preso na Ilha Grande, quem organizava as visitas quinzenais, marcadas por uma viagem longa e difícil, era Mário, que nunca se envolveu na luta armada, mas nunca deixou de ajudar o amigo.

Antes de começar a campanha, Gabeira e Mário, como fazem habitualmente, almoçaram juntos num fim de semana. Era uma despedida temporária, mas o afastamento não chegou a ser completo. É de um amigo de Mário, por exemplo, o conjunto de salas cedido gratuitamente para abrigar o comitê da campanha.

- O que mais admiro em Gabeira é a coragem de fazer a autocrítica. Além disso, Gabeira não pára quieto. É hiperativo - disse.