Título: A crise pela lente dos mestres
Autor: Melo, Liana
Fonte: O Globo, 26/10/2008, Economia, p. 43

As idéias de Keynes e Friedman continuam atuais e são usadas para ajudar a entender a crise financeira

O economista inglês John Maynard Keynes escreveu, ainda na Grande Depressão, que "os homens são escravos de algum economista defunto". Sua profecia rompeu fronteiras geográficas e barreiras temporais. Até hoje ele tem seguidores. Quando Keynes morreu, em 1946, o americano Milton Friedman já rivalizava com suas idéias. O primeiro era intervencionista e o segundo, um feroz defensor do liberalismo econômico. Como eles analisariam a crise global hoje? O keynesiano Renato Baumann, da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), e o friedmaniano José Júlio Senna, ex-diretor do Banco Central e sócio da MCM Consultores, aceitaram o desafio do GLOBO: analisar a crise sob a ótica de dois dos mais célebres economistas do século XX.

Liana Melo

O que foi feito de errado pelos governos dos países desenvolvidos, especialmente os Estados Unidos, para desencadear a crise financeira global?

JOHN MAYNARD KEYNES (por RENATO BAUMANN): Houve um excesso de liberdade, que pode ser traduzido pela falta de regulação e supervisão por parte das autoridades financeiras e monetárias no mercado de derivativos. No momento em que as primeiras instituições começaram a mostrar debilidade, o contágio foi imediato. Esse efeito dominó, aparentemente, ainda não terminou. Imaginava-se que os mecanismos de controle existentes eram suficientes.

MILTON FRIEDMAN (por JOSÉ JÚLIO SENNA): Prevalece, nos Estados Unidos, o chamado mandato dual, segundo o qual o Federal Reserve (Fed, o banco central americano) tem de perseguir a estabilidade de preços e gerar o máximo possível de emprego. É bem possível que essa exigência legal, reforçada por legislação de 1978, esteja na raiz da crise atual. Eu hoje renovaria minhas críticas a esse dispositivo legal. E, provavelmente, estenderia essas objeções àquele que é considerado o mais fiel executor do mandato dual: Alan Greenspan (ex-presidente do Fed).

O senhor acredita que o ambiente macroeconômico em que os Estados Unidos estavam vivendo ajudou a empurrar o mundo para esta crise?

KEYNES: Não tenho a menor dúvida. Como os Estados Unidos estavam vivendo uma situação de inflação baixa e disponibilidade de liquidez de divisas, criou-se a falsa ilusão de que o risco de crise tinha desaparecido definitivamente. Vivemos os últimos oito anos como se o risco de crise tivesse desaparecido, quando, na verdade, era o ovo da serpente que estava se desenvolvendo. Além do mais, foi dado um peso excessivo às agências de risco na determinação da alocação de recursos. Ficou claro também o baixo grau de comprometimento do sistema bancário privado na resolução de crises.

FRIEDMAN: Com certeza. Greenspan manipulou em excesso o instrumento de política monetária dos tempos modernos, que é a taxa de juros. O juro básico de política monetária foi muito baixo entre 2003 e 2004 - ficou em 1% ao ano durante 12 meses, em parte porque foi muito alto anteriormente. Em 2000, a taxa de juro era 6,5%, ficando nesse patamar por um ano. Na era Greenspan, o juro subia quando o objetivo era conter a alta de preços e era fortemente ajustado para baixo ao primeiro sinal de desaquecimento econômico. Era isso justamente que não deveria fazer, em hipótese alguma. A tese central é de que o chamado "ativismo monetário" constitui algo prejudicial à economia. Ou seja, a manipulação excessiva da política monetária provoca instabilidade e não estabilidade.

O senhor enxerga algum acerto no enfrentamento da crise financeira?

KEYNES: Concordo com Paul Krugman, da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, que acaba de ganhar o Nobel de Economia. Ele diz que não importa se o governo vai injetar dinheiro na economia e isto gerar déficit público. Dane-se o déficit público. O que importa agora é assegurar o poder de compra das pessoas e não deixar que o lado real da economia seja contaminado. O crucial agora é reduzir o risco sistêmico e assegurar a preservação do ritmo de atividade do lado real da economia.

FRIEDMAN: É fundamental fazer distinção entre preservar o sistema bancário e salvar banco insolvente. Uma parceira de muitos anos, a economista Anna Schwartz, deu entrevista há alguns dias. Ela mostrou falta de simpatia pela política hoje praticada de capitalizar instituições financeiras com recursos públicos. Ela lembrou que fazer sumir os chamados "ativos podres" seria o caminho mais promissor. Mas as dificuldades de caminhar nesse sentido são bastante conhecidas e têm a ver com a enorme dificuldade de estabelecer preços para os complexos ativos hoje em mãos dos bancos.

E os países em desenvolvimento como o Brasil, por exemplo, estão conseguindo agir com sabedoria no enfrentamento da crise?

KEYNES: Os países em desenvolvimento estão adotando medidas parecidas com as lá de fora. A transmissão ainda está chegando, bem mais lentamente do que foi no exterior, entre os Estados Unidos e os países da União Européia. A Argentina, por enquanto, foi o país que adotou o modelo mais acabado do keynesianismo, ao estatizar o sistema de previdência privada.

FRIEDMAN: Com crise ou sem crise, estamos horrorizados com o grau de intervenção estatal em nossa economia. Seguramente sugeriria retirar as amarras, que impedem crescimento econômico mais expressivo. Economia mais livre é economia mais forte, ou seja, em melhores condições de enfrentar qualquer crise, interna ou externa. Liberdade para a iniciativa privada e regime econômico competitivo é tudo de que mais precisamos. Por outro lado, aplaudimos o trabalho do BC, que, de uns tempos para cá, passou a se dedicar à tarefa de combater a inflação, a única passível de ser conseguida pela autoridade monetária de qualquer país.

BRASILEIROS EM NY SENTEM OS EFEITOS DA CRISE, na página 44