Título: Discussão não vai acabar com déficit democrático
Autor: Passos, José Meirelles
Fonte: O Globo, 16/11/2008, Economia, p. 28

Para ex-economista da ONU, só uma discussão no âmbito da organização asseguraria representatividade aos países

A discussão sobre a reforma das finanças globais no G-20 foi "um passo necessário, mas não suficiente para acabar com o déficit democrático" no mundo. A opinião é do ex-economista das Nações Unidas (ONU) Jan Allen Kregel, hoje professor da Levy Economics Institute of Bard College (EUA). Para ele, o G-20 não assegura representatividade, já que seus membros são escolhidos aleatoriamente.

Danielle Nogueira

Muitas das regras que orientam o sistema financeiro internacional, ou sua ausência, são determinadas em reuniões das quais participa um seleto grupo de países. Após a crise, essa estrutura excludente ainda terá espaço?

JAN ALLEN KREGEL: Uma das principais instituições que formam essa estrutura é o Comitê da Basiléia sobre Regulação Bancária (foro criado em 1974 para discutir e recomendar regras para o sistema financeiro). A regulamentação estabelecida por ele nos anos 80 teve por objetivo solucionar problemas que os bancos centrais dos países desenvolvidos enfrentavam na época. Ela não é aplicável aos países em desenvolvimento. Foi adotada por um grande número de nações. Primeiro, porque o FMI inclui essas normas no pacote de condicionalidades de seus empréstimos. Muitos países em desenvolvimento aderem a elas voluntariamente por acreditar que precisam atrair capital. Isso significa que muitas pessoas são submetidas a regras criadas por um grupo de indivíduos que não foi eleito por elas. Essa situação distorce o processo de representação e de legitimidade dos governos.

Mas essas estruturas de decisão manterão sua força?

KREGEL: Veremos no próximo ano. A UE propôs que o Fórum de Estabilização Financeira, outra instituição com estrutura excludente, seja a principal agência da reforma financeira. Isso repetiria as dificuldades com o Comitê da Basiléia.

Mas o presidente francês, Nicolas Sarkozy, defende a ampliação do G-7.

KREGEL: O G-20 foi apresentado como uma alternativa. Só que ele é desses cogumelos que nascem não sabemos de onde, criado no governo Bill Clinton. Em que medida esse grupo representa um processo legítimo e democrático de representação e pode ser considerado uma alternativa para a formulação do novo sistema financeiro global?

Então, um simples alargamento do G-7 não funciona?

KREGEL: A questão não é se vai funcionar ou não. E sim se isso vai reduzir o déficit democrático. Na Conferência de Bretton Woods (1944), todos os países participaram (as nações aliadas). Claro que havia menos países que hoje, e os Estados Unidos eram a nação dominante. Mas o ponto é que foi um processo inclusivo, do qual todos os países tiveram a chance de se manifestar. No G-20, se você está fora, está fora.

Qual seria o fórum mais adequado?

KREGEL: Para desenhar um sistema financeiro realmente novo, é preciso atender a critérios mínimos de representatividade. A ONU é a única estrutura legítima em que há essa representatividade.

A cúpula foi em Washington, o centro político dos EUA, mas a proposta inicial era que fosse em Nova York, o centro financeiro. Há algum simbolismo nessa alteração?

KREGEL: Nova York teria sido um lugar mais neutro, e não estaria tão ligado ao fato de que a cúpula foi convocada por um presidente que não pode decidir nada porque está em fim de mandato.

Como o senhor avalia a decisão de Barack Obama de não participar da reunião?

KREGEL: A decisão foi bastante sensata. Assim, qualquer decisão tomada não o deixaria com os punhos amarrados. Outro ponto é que, se Obama tivesse participado, ele estaria sinalizando implicitamente que o G-20 é o fórum apropriado para essa discussão.

Com Obama, os EUA estarão mais inclinados a fazer mudanças e ouvir mais os outros países?

KREGEL: Sem dúvida, o comportamento nos últimos oito anos do governo americano foi absolutamente anormal. Com Obama, deve haver um retorno ao multilateralismo.

Qual seria o papel da América Latina na nova arquitetura financeira global?

KREGEL: A América Latina está se tornando mais importante, não pelas decisões políticas de seus governos, mas por causa dos outros. Por isso, é muito importante que ela participe das discussões, pois as decisões que forem tomadas terão reflexo sobre suas políticas domésticas.