Título: Deus e Cesar
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Fonte: O Globo, 15/11/2008, Opinião, p. 6

Na visita feita ao Vaticano na quinta-feira, antes de rumar para a reunião do G-20 em Washington, o presidente Lula cumpriu a clássica agenda de tantos chefes de Estado, ao ser recebido em audiência pelo Papa. Costumam ser encontros cercados por uma atmosfera de religiosidade e diplomacia. Esta visita da autoridade brasileira, porém, foi marcada por forte interesse diplomático, principalmente do Vaticano, como deixam transparecer os termos do Acordo Brasil-Santa Sé sobre o Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, assinado na ocasião.

Entre os 20 artigos do documento, destacam-se os referentes ao ensino religioso e à imunidade tributária (isenção) das rendas e patrimônios das pessoas jurídicas ligadas à Igreja. A relevância dessas questões se deve à necessidade de se preservar de fato a laicidade do Estado, em todos os aspectos - em especial no ensino público -, e à preocupação com o mau uso da compreensível e defensável imunidade das receitas e ativos de qualquer igreja - não apenas a católica - por pessoas de má-fé.

A separação entre Estado e Igreja não é um capricho ou algo derivado de filosofias materialistas, mas uma conquista obtida a partir da Revolução Francesa, no final do século XVIII, a pá de cal no feudalismo, a base da República. Assim como não se pode transigir com a liberdade religiosa, o Estado deve representar e servir a todos, jamais a corporações e classes sociais específicas, bem como a igrejas.

A defesa feita do acordo entre Brasil e Santa Sé frisa que o texto está em linha com o dispositivo constitucional que obriga ser facultativo o ensino religioso. O problema está quando boas intenções escritas em letra de fôrma são aplicadas na vida real. O processo de escolha dos professores, o legítimo interesse de outras religiões em estar presentes nas salas de aula, o processo de consulta aos pais sobre a conveniência da matéria, todas estas são questões que precisam ser bem equacionadas, sem que se transforme o ensino religioso em fato consumado. Com isso, o facultativo se converterá em compulsório. Também será desastroso se a intolerância de algumas correntes religiosas conseguir infiltrar-se nas escolas públicas.

Entra-se, como se nota, num terreno desconhecido, a ser explorado com cuidado. O mesmo ocorre com a imunidade tributária. Num país conhecido pela expertise da sua criminalidade de colarinho branco, aconselha-se a não se instituir virtuais paraísos tributários, seja por qual pretexto. Como nos Estados Unidos, as igrejas e respectivas instituições precisariam ter e manter em dia a contabilidade, para poder comprovar, a qualquer momento, a origem e o destino do que arrecadam. E a Receita, por sua vez, também como nos EUA, deveria fazer fiscalizações por amostragem. Dessa forma, seria respeitada a imunidade das entidades religiosas, bem como o interesse do Estado, dos próprios religiosos e da sociedade como um todo de que este tratamento tributário especial não seja usado de forma mal-intencionada, sob o disfarce da filantropia e do amor ao próximo.

O Congresso, antes de ratificar o acordo, deve abrir amplo espaço para o debate.