Título: Governantes panfletários
Autor: Silva, Francisco Carlos Teixeira da
Fonte: O Globo, 21/11/2008, Opinião, p. 7

Após os episódios envolvendo o Estado equatoriano e empresas brasileiras (Petrobras, Odebrecht, BNDES), a opinião pública no Brasil ficou com a impressão de que o novo caso somou-se ao contencioso entre Bolívia e Petrobras e, no horizonte, com o mal-estar gerado pelas críticas da imprensa nacionalista paraguaia contra o Brasil. Neste cenário, muitos se perguntam se a idéia de integração regional é, afinal, um bom negócio para os brasileiros.

Dada a sábia diversificação da pauta de negócios do país, ampliada fortemente nos últimos anos, o Brasil possui várias opções de comércio exterior, de investimentos e para a internacionalização de suas empresas. A proposta de uma integração sul-americana está ancorada num projeto maior, de larga duração, de construção de bases sólidas para a projeção internacional do país.

A maré nacionalista e estatizante que avança em países como Venezuela, Bolívia e Equador não é, por si só, impeditiva a tal projeto. Vejamos: o comércio exterior brasileiro tem, nos países da Aladi (Associação Latino-Americana de Integração), o seu segundo destino, depois da União Européia, representando US$32,763 bilhões entre janeiro e setembro de 2008, enquanto os EUA aparecem em quarto lugar, com US$21,506 bilhões. Quando separamos a Aladi do Mercosul, este aparece, sozinho, como nosso quinto parceiro comercial, com um volume de comércio de US$17 bilhões. Temos saldo favorável com todos no bloco: Argentina, US$4 bilhões; Paraguai, US$1,1 bilhão; Uruguai, US$500 milhões. Com os países associados o quadro é o mesmo: com a Bolívia temos um saldo de US$750 milhões; Chile, US$800 milhões; Equador, cerca de US$632 milhões; e com a Venezuela nosso saldo é de US$4,378 milhões. Ora, a acusação de "ideologismos" na pauta de relações exteriores do país é, diante desse quadro, muito difícil de sustentar.

Tais saldos comerciais são geradores de emprego, renda e de absorção de tecnologia no Brasil. Politizar o comércio exterior do país, transformando-o numa batalha ideológica, é um grande equívoco.

É claro, também, que temos problemas. Certos parceiros sofrem uma imensa fragilidade de marcos regulatórios mínimos para investimentos. A Bolívia mal consegue definir o futuro de sua Constituição. O governo do Equador acredita que contratos comerciais podem ser regidos a manu militari.

Com a crise financeira mundial, a América do Sul estará perante uma encruzilhada histórica. Ou aprofunda a integração continental, ou tornar-se-á um palco (e secundário) para as disputas das grandes potências. Caso a crise do mercado americano seja muito profunda e as compras do país despenquem, poderíamos ver uma China conjunturalmente ainda mais agressiva em mercados substitutos, em especial na África e na América Latina. Esbarraríamos, então, na concorrência chinesa muito mais ativa e dura em mercados terceiros de interesse do Brasil. Assim, cabe desde logo aprofundar acordos bilaterais e ampliar o Mercosul.

Além disso, a crise fará com que alguns países sul-americanos, altamente dependentes de commodities agrícolas e minerais em fase aguda de desvalorização no mercado mundial, tenham dificuldades em cumprir uma agenda social intensa.

É neste cenário que caberia aos países como o Equador, por exemplo, considerar a efetivação de seus compromissos de progresso social e de integração continental. Utilizar, em face de qualquer crise interna, o nacionalismo panfletário como forma de manipular o movimento social é um cheque atualmente sem fundos.

Aos poucos um crescente número de formadores de opinião da sociedade brasileira sente-se saturado por ver símbolos de orgulho nacional arrastados para o interior de disputas domésticas de nossos vizinhos. É hora de nossos irmãos no continente entenderem melhor a realidade interna brasileira, avaliarem o ânimo de nossa opinião pública e o risco de o Brasil voltar-se para regiões que ofereçam a garantia de um marco regulatório mínimo. Temos compreendido as particularidades e os interesses de nossos vizinhos para poder avançar com a integração sul-americana. Cabe agora aos nossos parceiros agir de maneira recíproca.

FRANCISCO CARLOS TEIXEIRA DA SILVA é professor de História Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro.