Título: Novas ordens
Autor: Leitão, Míriam
Fonte: O Globo, 22/11/2008, Economia, p. 24
O mundo em transe com o colapso dos ativos; extravagâncias na divisão de poder: cinco países europeus, com o mesmo BC, têm 36% dos votos no FMI. Mesmo assim, os embaixadores Rubens Ricupero e Sérgio Amaral não acreditam em nova ordem econômica internacional. Os dois sugerem mudanças aqui: proteção da Amazônia e educação dos negros levarão o Brasil ao século XXI.
Conversei com os dois no programa da Globonews. Ricupero acha que o novo presidente americano terá que, primeiro, acudir as emergências internas.
- Será preciso acabar com o incêndio, remover o entulho. Não é no meio do incêndio e do entulho que se reconstrói o edifício.
Amaral lembrou que toda vez que surge uma crise, fala-se em reformar a arquitetura econômica internacional.
- Reformar o quê? Os Estados Unidos já disseram que querem mais transparência, mais controle de risco e regras convergentes, mas não em uma regra internacional de regulação para os países. A Europa quer uma instância internacional para regular e num banco central emprestador de última instância, e isso é mais ambicioso. Mas é preciso saber quem vai fazer a reforma, se será o FMI.
O FMI ficou pequeno demais para o tamanho dos mercados. Ricupero lembrou a idéia de aumentar o poder do FMI, mas ele pensa que não é o FMI que deve regular os bancos, e sim o BIS.
- Não são os bancos que estão em crise, mas sim os bancos de investimento. Eles é que foram o pivô da crise e as outras instituições foram contaminadas - lembrou Sérgio Amaral.
- A regulação tem que incluir todas as entidades que fazem intermediação financeira, nada deve escapar. Os Hedge Funds não estavam, e não estão, submetidos a regras da Basiléia. Nenhuma entidade que se ocupe de finanças pode escapar de fiscalização - disse Ricupero.
- O problema é que os mercados são globais e as regras são nacionais. Teriam que ser internacionalizadas, mas quem disse que os países que têm mais peso no sistema vão abrir mão da capacidade de regular? Como disse a ministra francesa Christine Lagarde, "quem paga o gaiteiro, escolhe a música" - falou Amaral.
Mais do que o poder americano, a super-representação européia no FMI é que espanta Ricupero.
- Os EUA têm 16% dos votos no FMI e os europeus têm, somados, 36%. Não se justifica que Alemanha, Itália, Bélgica, os países baixos e França, que têm o mesmo Banco Central, tenham poder de voto separado. Na OMC, os 27 falam com uma só voz.
Apesar dessas desordens, os dois embaixadores, com a experiência de terem representado o Brasil em países e entidades importantes - Ricupero foi secretário-geral da Unctad, Amaral foi embaixador em Londres e Paris - não acreditam que de fato se reformule o sistema internacional nesta crise.
- Precisar, precisa. É viável? Acho que não, porque estes países vão preservar seus poderes e já demonstraram isso - disse Amaral.
- Há 50 anos entrei no Itamaraty, um dos meus examinadores foi João Guimarães Rosa. Desde aquela época ouço falar em nova ordem mundial, mas a correlação de poder não mudou - contou Ricupero.
- Achar difícil não significa não tentar. É preciso tentar, porque a correlação de forças mudou: os EUA no pós-guerra tinham 50% do PIB mundial, hoje têm 21% e os países em desenvolvimento têm 50%. Houve uma mudança de fato - ponderou Amaral.
Perguntei a eles o que significa Barack Obama, um negro, no poder americano, que mudanças ele representa. E a resposta de Sérgio Amaral levou ao Brasil e às nossas necessidades de mudança.
- O dia 4 de novembro representa a entrada dos Estados Unidos no século XXI, a construção do início dos direitos civis de uma sociedade multirracial, multicultural, multiétnica. Obama é uma pessoa com raízes fortes na sociedade civil, é um organizador de comunidades. O que eu não sei é se, no Brasil, nós estamos no século XXI. Há uma nova realidade e novas oportunidades no mundo que o Brasil deve aproveitar. Na questão ambiental o Brasil pode ser um líder.
Ricupero concordou: na área ambiental o Brasil tem uma posição defensiva e perdeu o papel de facilitador que teve na reunião da Rio-92.
- Nós deveríamos aceitar pagar o preço da nossa influência assumindo um compromisso de acabar com o desmatamento, porque é nosso interesse. Um cientista provou esta semana que se o desmatamento no Pará chegar a 40%, pode acontecer um fenômeno irreversível de redução da umidade que transforme a Amazônia em cerrado e reduza a chuva sobre São Paulo.
Na área racial, Ricupero disse que há um século a elite não era tão branca.
- O imigrante estrangeiro chegou com acesso à educação e a população negra foi abandonada sem acesso à educação. Há 100 anos, nós tínhamos, no Rio, Lima Barreto, Cruz e Souza e Machado. Hoje seria difícil fazer uma lista assim na elite intelectual. Os negros, os afro-descendentes, tiveram pouco acesso à educação formal, por isso acabam se distinguindo pelo talento naquilo que não depende da educação formal, o futebol e as artes.
Concluí que se é difícil mudar a correlação de poder mundial, já será uma grande tarefa acabar com o desmatamento da Amazônia e promover a educação dos afro-descendentes. Passos que nos levarão ao século XXI.