Título: O espírito de Bombaim não será destruído
Autor: Costa, Florência
Fonte: O Globo, 30/11/2008, O Mundo, p. 34

No templo Parsi a alguns minutos do Hotel Taj Mahal, a segunda ¿sentada¿ para o jantar estava perto do fim. Um grande casamento parsi ¿ e todos eles são grandes, gordos casamentos indianos ¿ prevê três rodadas de convidados que se sentam para jantar. Depois de fazerem fila para dar à noiva e ao noivo ¿o pacote¿ (um envelope com dinheiro), eles vão para o bar tomar uma boa dose de uísque, uma ou duas sodas, esperando sua vez para comer.

E na hora em as pessoas da segunda rodada do jantar terminavam seus últimos pedaços da sobremesa, e a terceira estava para iniciar sua refeição, alguns da primeira leva já começavam a dançar ao som de antigos sucesso do Abba e ¿My way¿, de Frank Sinatra. Foi quando as notícias chegaram.

O Leopold, um tradicional café em Colaba ao antigo estilo iraniano, popular entre os estrangeiros, tinha sido atacado por terroristas armados. Depois, numa rápida sucessão, o Trident e o Taj, os dois hotéis mais conhecidos da cidade, ficaram sob cerco. A terceira rodada do jantar, no casamento, continuou, em silêncio completo.

O casamento parsi, com seu suntuoso banquete, era parte intrínseca da situação. Isso porque Bombaim possui grande capacidade de resistência e flexibilidade, característica que vem em grande parte de sua fibra cosmopolita: o empenho da força trabalhadora das pessoas que lá se estabeleceram vindas do Sul da Índia; os indianos do Norte com sua satisfação em aceitar alegremente os mais maçantes trabalhos; os empreendedores parsi e marwaris que lá construíram suas indústrias e fábricas para processar algodão; os comerciantes e homens de negócio gujarati... Tudo isso contribuiu para produzir o DNA de Bombaim e sua habilidade de sobreviver a muitas tentativas de destruição.

Isso embora na quarta-feira à noite essa capacidade de resiliência tenha sido posta à prova como nunca. Bombaim não é virgem em ataques terroristas: bombas já foram colocadas em prédios, em trens, em mercados. Essas bombas mataram muitas pessoas também. Mas as mortes eram erráticas e os mortos, em sua maioria, homens na rua.

Na quarta-feira, esses jovens homens ¿ armados até os dentes, respondendo não se sabe a que chamado do céu ¿ tinham como alvo os privilegiados. Também miraram nos estrangeiros, que até podem ser assaltados mas nunca estão sob ameaça real na Índia. Ao escolher o Taj Mahal Hotel, os terroristas também escolheram o mais icônico edifício da cidade, que é simplesmente chamado ¿o Taj¿ sem necessitar de sufixo ou prefixo. Ao atacar os privilegiados da cidade em seu ícone, os terroristas estavam dando seu recado ao mundo e atingindo a cidade em seu centro. Irá Bombaim se recuperar? Sim, a cidade já se uniu no passado. Já resistiu, por exemplo, às tentativas de Shiv Sena, um partido regional do estado de Maharashtra de mudá-la.

O Sena tornou-se proeminente nos anos 1970 ao jogar com o medo universal do ¿imigrante¿. O forasteiro era o ¿madrasi¿, qualquer um proveniente dos estados sulinos de Tamil Nadu, Andhra Pradesh, Kerala e Karnataka. Depois, quando o Sena se deu conta de que precisava dessa laboriosa mão-de-obra, os alvos passaram a ser os muçulmanos. E agora um galho do Sena, o MNS (Maharashtran Nav Nirman Samiti), fez dos indianos do Norte seu objeto de ira. Trabalhadores de estados nortistas de Bihar e UP foram demitidos de fábricas e escritórios, muitas vezes violentamente. E geralmente com resultados desastrosos porque são eles que costumam realizar trabalhos menores que os locais não aceitam.

No entanto, Bombaim pertence a todos. Aos parsi, marwari, gujarati, punjabi, ingleses e europeus e, também, aos maharshtrian. Isso explica por que as tentativas de destruí-la no passado não foram bem-sucedidas. Os terroristas que deixaram buracos no Taj e no Trident tentaram dividi-la novamente. Mas algo me diz que não conseguirão. Isso não se baseia apenas em otimismo, mas no que se viu na cidade logo após os ataques.

Na hora dos ataques que pararam os serviços de trem, e antes mesmo de qualquer ajuda oficial, os passageiros criaram seu sistema de socorro, transformando táxis e riquixás em ambulâncias temporárias. Este é o espírito de Bombaim. E não será destruído.

ANIL DHARKER é colunista do Independent, morador de Bombaim e autor, entre outros, de ¿Icons¿, sobre a Índia contemporânea