Título: Genocídio das vítimas da Aids
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Fonte: O Globo, 27/11/2008, Ciência, p. 33
Política do governo de Thabo Mbeki causou a morte de 365 mil sul-africanos.
Um estudo da Universidade de Harvard calculou que o governo da África do Sul poderia ter evitado a morte prematura de 365 mil pessoas no início desta década, se tivesse oferecido drogas anti-retrovirais a pacientes com Aids e dado a mulheres soropositivas grávidas medicamentos para impedir a transmissão do HIV aos bebês em gestação.
Segundo uma reportagem do jornal ¿New York Times¿, os pesquisadores de Harvard concluíram que houve um claro elo entre as mortes e a mundialmente criticada política do ex-presidente sul-africano Thabo Mbeki de negar que o HIV causa a Aids e, por isso, não oferecer tratamento com anti-retrovirais.
Alho e limonada contra o HIV
Mbeki deixou o governo da África do Sul em setembro, após uma disputa interna em seu partido, o Congresso Nacional Africano (CNA). O estudo volta a questionar o motivo de por que Mbeki, um homem conhecido pela habilidade política, se deixou envolver pelo marginalizado grupo dos que negam a existência da Aids, já no início de seu governo, em 1999. Os pesquisadores destacaram o fato de os políticos do CNA nada terem feito para pressionar o governo a tomar medidas contra a Aids. A África do Sul tem 5,7 milhões de pessoas com HIV, mais que qualquer outro país do mundo. Quase um em cada cinco adultos tem o vírus. Por dia, 900 pessoas morrem de Aids.
Uma das primeiras medidas do sucessor de Mbeki, Kgalema Motlanthe, foi demitir o ministro da Saúde, Manto Tshabalala-Msimang, que havia dito que os doentes de Aids deveriam ser tratados apenas com alho, limonada e raiz de beterraba. Ele foi substituído por Barbara Hogan, que finalmente adotou medidas para combater a epidemia.
¿ Eu me envergonho profundamente. Mas a era da negação da Aids acabou ¿ disse Hogan, uma militante do CNA, que passou 10 anos na prisão durante o apartheid.
A equipe de Harvard quantificou o custo humano da política de Mbeki comparando o número de pessoas que tomaram anti-retrovirais na África do Sul de 2000 a 2005 com o número que poderia ter sido beneficiado se o governo tivesse criado um programa de prevenção e tratamento. O estudo estima que a África do Sul poderia ter ajudado metade das pessoas soropositivas em 2005. Porém, somente 23% tiveram acesso a algum tratamento. Em comparação, Botsuana provê tratamento para 85% dos soropositivos e a Namíbia, para 71%.
Os pesquisadores viram que 330 mil sul-africanos morreram por falta de tratamento contra o HIV e 35 mil bebês faleceram porque nasceram infectados. A prevenção da transmissão materno-infantil é uma prática corrente na maioria dos países, mas não na África do Sul. O governo de Mbeki só passou a oferecer algum tipo de tratamento após ser obrigado por uma decisão da Justiça.
Epidemiologistas e bioestatísticos que fizeram uma revisão do estudo a pedido do ¿New York Times¿ disseram que os dados, na verdade, são conservadores. O número de vítimas pode ser ainda maior. O estudo será publicado na segunda-feira na revista ¿Journal of Acquired Immune Deficiency Syndromes¿.
Mbeki tem mantido o silêncio sobre a política de Aids de seu governo. Seu porta-voz disse que foi uma decisão conjunta do gabinete. Relatos recentes de membros do próprio CNA, porém, mostram que Mbeki chegou a humilhar Nelson Mandela em 2002, quando este tentou defender o direito aos medicamentos para pacientes com Aids.
Para os sul-africanos que militaram pelo direito à assistência para as vítimas da Aids, a ferida ainda está aberta. Zackie Achmat, o mais conhecido militante do país, ficou gravemente doente durante os cinco anos em que se negou a tomar anti-retrovirais enquanto eles não fossem amplamente disponíveis. Achmat considera Mbeki o principal responsável pela tragédia africana da Aids:
¿ Ele é como Macbeth. É mais fácil ter as mãos sujas de sangue do que voltar atrás e admitir que errou.