Título: Os civis colaboracionistas
Autor: Otavio, Chico
Fonte: O Globo, 07/12/2008, O País, p. 3

Marco da fase mais obscura do regime militar, há 40 anos, teve apoio de setores da sociedade.

Esta é mais do que uma história de vilões e heróis. Muito já se sabe sobre os generais que, sob o comando do presidente Costa e Silva, impuseram à nação, em 13 de dezembro de 1968, o Ato Institucional nº 5. Também é extensa a bibliografia disponível sobre homens e mulheres que lutaram contra os militares, alguns inclusive dando a vida pela causa. Mas a história que segue não terá os dois lados no centro da trama. Na semana em que o país lembra os 40 anos do gesto mais extremo da ditadura, um grupo de historiadores desafia os próprios colegas ao trazer para o debate o papel desempenhado pela sociedade civil no processo. Eles afirmam que o ato não foi apenas produto dos quartéis. Seus estudos mostram a participação de "paisanos" na conspiração, seja por convicções ideológicas, seja por interesses pessoais. E também indicam que entidades como OAB e ABI, mais tarde decisivas no enfrentamento do regime, calaram-se ou procuraram um convívio pacífico no momento em que o país ingressava no período mais obscuro do regime.

- A dimensão militar da ditadura está bem estudada. Mas ainda falta, e muito, estudar e refletir sobre a dimensão civil da ditadura. Pois a ditadura brasileira, sem nenhuma dúvida, em todos os seus momentos, foi uma ditadura militar e civil. Sem os civis, ela não teria começado, nem durado, como durou. Em uma palavra: sem os civis ela simplesmente não teria existido - sustenta um desses pesquisadores, o professor da UFF Daniel Aarão Reis.

Ministério Público e STF deram licença

A partir de hoje, O GLOBO vai mostrar por que os militares não estavam sozinhos quando decidiram mergulhar o Brasil no período mais sombrio de sua história, marcado por expurgos, tortura e mortes nos porões de quartéis e delegacias. Embora o apoio não fosse o mesmo de 64, ano em que uma parcela da sociedade foi às ruas pedir a deposição de Jango, os generais não estavam sozinhos quando quiseram cassar o deputado Márcio Moreira Alves, autor de dois discursos ofensivos às Forças Armadas: o pedido de licença para processar o parlamentar, antes de chegar à Câmara, teve o aval do Ministério Público Federal e do Supremo Tribunal Federal. Os generais também não estavam sozinhos quando obrigaram a Câmara a votar o pedido no meio do recesso: setores mais radicais da Arena, partido do governo, insuflaram os quartéis a apostar no confronto. Depois, baixado o ato, os generais também não ficaram sozinhos nos palácios: sua máquina de propaganda conquistou multidões, como ocorreu nas comemorações do Sesquicentenário da Independência, em plena vigência do AI-5.

- Mesmo nos períodos mais duros do regime, os chamados anos de chumbo, embora houvesse luta e resistência contra a ditadura, havia também sustentação ativa, sem esquecer as ambivalências, os ziguezagues, as indiferenças que, nas circunstâncias, contribuíram, e muito, para a permanência do regime ditatorial - disse Aarão Reis.

"Anos de chumbo. Mas para quem?"

As oposições ao golpe sempre chamaram o regime imposto de ditadura militar. A sociedade brasileira se acostumou com a denominação, que figura em todos os livros didáticos e em boa parte da literatura sobre o assunto. Dos não-fardados, a referência mais famosa sobre o 13 de dezembro foi a presença de civis na reunião ministerial que aprovou o ato. Um dos personagens mais lembrados, o então ministro da Fazenda, Delfim Netto, passaria os dez meses seguintes executando as medidas do "milagre econômico" sem o Congresso Nacional para importuná-lo. Mas poucos se recordam do deputado Clóvis Stenzel (Arena-RS). Ele não freqüentava os gabinetes palacianos. Porém, estava entre os radicais que, na contramão do esforço por uma solução negociada para acabar com a crise, convenceram os militares a jamais recuar no empenho para cassar Márcio Moreira Alves.

- Eu era chamado de "guarda Costa" porque apoiei o presidente Costa e Silva desde o instante em que me elegi. Não era o único, mas era o líder. Tenho a relação de todos os guarda-costas, coisa que ninguém tem - lembra Stenzel hoje.

Graças ao trabalho de três historiadoras (Denise Rollemberg, Janaína Cordeiro e Lúcia Grinberg), a parte esquecida ou omitida desta história, a da participação civil, começa agora a ser detalhada. Denise estuda o papel da ABI e da OAB na época, enquanto Janaína se deteve no Sesquicentenário da Independência (1972), e Lúcia pesquisou a Arena. Para elas, os setores da sociedade que estavam totalmente a favor ou totalmente contra os militares eram muito pequenos. A grande maioria, sustentam, transitou no que chamam de "zona cinzenta", intercalando apoio e crítica, avanços e recuos, mas sem assumir uma posição clara. Um dos documentos recolhidos por Denise, por exemplo, é um telegrama de apoio ao presidente Emílio Garrastazu Médici, assinado pelo então presidente da ABI, Danton Jobim.

- Fala-se em ditadura militar, anos de chumbo. Mas para quem? Para os que apoiaram e ganharam com isso, foram anos de ouro. Se lançou um foco grande em relação à resistência, mas não à colaboração. A sociedade, depois que tudo passou, reconstruiu um passado de forma a se afastar do comprometimento com o regime. Mas a maior parte da sociedade estava na zona cinzenta. O grande desafio é entender essa ambigüidade - comenta Denise.

O AI-5, expressão mais acabada da ditadura militar brasileira (1964-1985), vigorou até dezembro de 1978 e produziu um elenco de ações arbitrárias, dando poder de exceção aos governantes para punir arbitrariamente os inimigos do regime. Quando o ato começou a produzir as primeiras vítimas, não havia tanto apoio popular aos militares como por ocasião do golpe (nas Marchas da Família, por exemplo). Não faltaram, porém, vozes civis a pedir prisões e punições e a fazer delações. Não faltaram juristas para assessorar o ministro da Justiça, Gama e Silva, apontado como o autor do ato. E não faltaram políticos a pedir cargos e benefícios nos anos do arbítrio.

- A ditadura foi capaz de estabelecer um diálogo com a sociedade. A ditadura não saiu do nada. É uma construção social. Construiu-se uma memória de que todo mundo foi contra. Tentam recuperar o espaço que a ditadura abriu para o diálogo com a sociedade - afirma Janaína Cordeiro.

Para recuperar esta relação ditadura-sociedade, a série de reportagens que se inicia hoje ouviu, além dos especialistas, importantes personagens civis do episódio.