Título: O santo é de barro
Autor: Machado, Antônio
Fonte: Correio Braziliense, 18/03/2009, Economia - Brasil S/A, p. 12

Caderneta vai mudar. Risco é abalar a confiança. Taxar depósitos de maior valor seria uma saída

O governo resolveu encarar o problema da remuneração da caderneta de poupança, que se tornou disfuncional diante da Selic em queda, mas o faz da pior maneira possível. Colocou-o em debate, quando o assunto, sensível e delicado, pede é decisão, não discussão.

Em entrevista a jornalistas brasileiros depois de um seminário em Nova York, por exemplo, o presidente Lula reconheceu pela primeira vez a possibilidade de rever a remuneração da caderneta. Não era o local o mais apropriado para tratar da questão, nem a sua resposta foi adequada, já que não tinha o que dizer. ¿Vamos ter que pensar, porque nós não poderemos permitir que os poupadores tomem qualquer prejuízo¿, respondeu Lula à indagação de um jornalista.

A caderneta rende 0,5% de juros mensais, o que dá, capitalizados, 6,17% ao ano, mais correção por um fator chamado Taxa Referencial (TR) ¿ nascida ao tempo da desindexação dos contratos, no bojo do Plano Collor de março de 1991, para romper a inércia da inflação. Só que nunca foi muito bem definida, apesar de expressa em lei.

Na prática, a TR funciona como correção monetária, embora mexidas feitas no passado com a mesma intenção de agora ¿ equalizar a taxa de retorno da caderneta à dos fundos de renda fixa dos bancos, que acompanham em geral a remuneração da Selic ¿ a fizeram nunca repor as perdas pela inflação, apenas uma parte cada vez menor. A última mexida foi em 2007, com a Selic, como está agora, a 11,25% ao ano.

Hoje, a TR anual é de 1,29%. Adicionada à remuneração corrente da caderneta, o rendimento em doze meses vai a 7,53%. É essa taxa que se compara com a Selic a 11,25%, que, deflacionada pelo IPCA anual até fevereiro (5,9%), implica retorno real de 5,05%. Como a TR não reflete fielmente a inflação ¿ é um ¿plus¿ para tapear o aplicador mais simples, maioria entre os depositantes, mas não na medida por valor aplicado ¿ as duas modalidades de poupança, as cadernetas e os fundos, estariam com remunerações reais quase equivalentes.

O que desequilibra a balança em favor da caderneta é a isenção do Imposto de Renda para os valores aplicados, o que não existe para os fundos ¿ que, além disso, são onerados pela cobrança pela banca de taxa de administração, de 2% a 4,5%, inexistente na caderneta.

O problema, assim, é que a caderneta tem remuneração fixa e mais benefício fiscal, enquanto os fundos são tributados e acompanham o referencial de juros definido pela taxa do overnight, que é função da política monetária, hoje tendendo a afrouxar, sob pena de pôr a economia numa recessão profunda e prolongada. Um problemão.

Distorções graves

A assimetria de rendimentos em prejuízo do sistema de fundos, que também são o principal canal de distribuição dos papéis da dívida pública emitidos pelo Tesouro Nacional, implica distorções graves. A banca terá menos recursos para aplicação em crédito comercial às empresas e ao consumo, e isso num quadro em que os juros cobrados nos empréstimos bancários já são ascendentes. A caderneta inchada, além disso, enxuga a liquidez corrente na economia, pois os fundos captados são aplicados apenas em financiamentos imobiliários.

O desfalque no IR

Ao embaraço do desequilíbrio dos fluxos financeiros se adiciona o não menos serio problema da queda da arrecadação tributária devido à desaceleração da economia, que foi 7,6% menor em janeiro sobre o mesmo mês em 2008, já descontada a inflação. E tende a cair ainda mais, comprometendo a execução de um orçamento fiscal já concebido com déficit e repleto de gastos contratados quando ao governo não havia a percepção de que a crise externa não aliviaria o país. Se a caderneta sugar a poupança financeira, o IR vai desabar, sendo sua receita partilhada com estados e municípios. Outro problemão.

Cultura de poupança

O que fazer? ¿Vamos ter que pensar, porque não poderemos permitir que os poupadores tomem qualquer prejuízo¿, disse Lula em Nova York. Ele está certo quanto ao pequeno aplicador. Há mais conta de caderneta do que conta corrente. Ela surgiu para financiar a casa própria e disseminar a cultura de poupança. Daí sua simplicidade e o senso de segurança, sobretudo para o aplicador menos instruído.

Não se deve quebrar tal percepção. Mas mudar a TR, que já é muito baixa, é pouco. Baixar a taxa de 0,5% pode abalar a confiança. Uma saída seria tributar os depósitos de maior valor, com base no CPF do aplicador, para evitar múltiplas contas. É simples, equaliza a caderneta aos fundos para o grande investidor e ajuda o fiscal.

Desleixo ofensivo

O que ofende a razão é o desleixo do governo frente a uma questão previsível, antiga e recorrente. No governo Figueiredo, algo igual levou o então ministro Antonio Delfim Netto a direcionar parte dos depósitos das cadernetas para títulos do Tesouro, que os reciclava para outros fins que não a habitação. Hoje, fala-se em trocar pela Selic os juros mensais de 0,5%. É um absurdo: os juros de política monetária não deveriam balizar nem papéis da dívida pública. O que o governo precisa é de uma solução provisória, já que não há tempo nem massa crítica para fazer o certo: uma ampla reforma monetária e fiscal, único meio de resolver de vez as distorções acumuladas.