Título: STF endossou ato de Costa e Silva
Autor: Otavio, Chico
Fonte: O Globo, 08/12/2008, O País, p. 3

Documento mostra que, mesmo podendo ter outra atitude, ministro Baleeiro apoiou cassação

Ele tinha, por lei, condições de interromper a escalada de acontecimentos que levaria a ditadura a aplicar o seu mais duro golpe na nação. Ainda assim, Aliomar Baleeiro, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), a quem coube a relatoria do caso Márcio Moreira Alves - o pretexto para a decretação do AI-5 - preferiu ir em frente. Num gesto quase esquecido de sua biografia, ele endossou a pretensão do governo Costa e Silva de dobrar a Câmara dos Deputados e arrancar à força a licença para processar Márcio, deputado emedebista que, três meses antes, fizera dois discursos incendiários contra as Forças Armadas.

Em manifestação de apenas três parágrafos, na qual fica patente o constrangimento do ministro, Baleeiro sustenta haver encontrado, na representação do governo, fundamentos suficientes para submeter o pedido ao Parlamento. "A representação, aditada por petição de hoje, contém os elementos processuais e essenciais para o despacho inicial do regimento interno", concluiu o ministro, que escreveria, com aquela decisão, o seu nome e a cumplicidade do Supremo na trama que culminaria, dias depois, na decretação do ato.

- Havia outra saída, que seria a hipótese de arquivamento baseada na impossibilidade de suspensão de direitos de parlamentar que faz pronunciamento no exercício do mandato. O próprio ministro da Justiça da época, Gama e Silva, reconhece a possibilidade em sua representação - sustenta Adriano Pilatti, diretor do Departamento de Direito da PUC-Rio e professor de Direito Constitucional.

"Baleeiro poderia ter arquivado"

Até aquele momento, o regime se esmerava em só tomar decisões, por mais arbitrárias que fossem, fundamentadas em lei. Para pedir a cabeça de Moreira Alves, Gama e Silva recorrera ao artigo 151 da Constituição de 1967 - previa que o procurador-geral da República poderia representar diretamente ao Supremo, requerendo a suspensão dos direitos políticos de quem "abusasse dos direitos individuais e dos direitos políticos". O parágrafo único desse artigo fixava que, sendo a representação contra parlamentar, seria necessária prévia licença da respectiva Câmara. Mas a mesma Constituição, no artigo 34, apesar de todas as suas circunstâncias autoritárias, mantinha a imunidade dos parlamentares, também chamada inviolabilidade, "no exercício de mandato, por suas opiniões, palavras e votos". Estava estabelecida a contradição.

- É razoável sustentar que os "abusos" referidos no artigo 151 não poderiam incluir "opiniões, palavras e votos" proferidos pelo parlamentar, notadamente da tribuna da Câmara, sob pena de violação da imunidade assegurada. Juridicamente, portanto, penso que o ministro Baleeiro poderia ter arquivado a representação, porque inviolabilidade significa, precisamente, a exclusão, mesmo em tese, de qualquer infração - afirma o constitucionalista Luiz Roberto Barroso, professor da UFRJ.

Baleeiro optou por submeter o pedido de licença à Câmara, que o recusou. No despacho, o ministro admite a controvérsia - "Sobram opiniões pela incompatibilidade da primeira", alega, referindo-se à tese sustentada por Gama e Silva. Mas, ainda assim, Baleeiro acabou capitulando ao alegar que, por ser "cláusula novíssima e inovadora da Constituição", o melhor a fazer seria encaminhar a representação. Na seqüência, veio o AI-5, Moreira Alves foi cassado e a representação perdeu o objeto, jamais sendo julgada pelo Supremo.

Na primeira de uma série de reportagens sobre os 40 anos do AI-5, publicada ontem, O GLOBO mostrou que estudos recentes procuram identificar e entender o papel dos civis na trama do AI-5. É bem verdade que a primeira peça foi movida dos quartéis, quando o general Lyra Tavares, ministro do Exército, em aviso ao presidente Costa e Silva, registrou a indignação da tropa com o pronunciamento do deputado. Uma seqüência de documentos, assinados por civis e militares, resultaria na decisão de Baleeiro. Um grupo de historiadores sustenta que, da crise à posterior execução do ato, os militares jamais agiram sozinhos. Para eles, as instituições e a própria sociedade oscilaram entre o confronto e o apoio, avanços e recuos, evitando rupturas.

Foi assim com o Supremo. A partir de 1964, o STF adotou uma postura pragmática de sobrevivência institucional, evitando o confronto direto com os militares. Aceitou, desta forma, como válidos os atos institucionais, a legislação de segurança nacional e outras medidas. Porém, Luiz Roberto Barroso ressalta que, em matéria penal, nas denúncias por crimes de natureza política, teve uma atuação destacada na defesa de direitos individuais, deferindo habeas-corpus e recursos contra denúncias vagas, contra excesso de prazo nas prisões etc. A independência de alguns ministros levou à cassação de três deles: Vitor Nunes Leal, Evandro Lins e Silva e Hermes Lima, em 16 de janeiro de 1969.

Parlamentares eram contra

Aliomar de Andrade Baleeiro é a expressão desta ambigüidade. Na condição de ministro do Supremo, era ele próprio produto de um ato institucional. Sua nomeação, com outros quatro ministros, foi alavancada pelo AI-2, de 1965, que ampliara de 11 para 16 o número de assentos na mais alta corte brasileira. Jurista e ex-deputado federal pela UDN, tinha bom relacionamento com o presidente Castello Branco. Em 1971, chegaria à presidência do STF. Mas, no ano seguinte, ele se colocaria contra o AI-5 e em defesa do estado de direito e da liberdade para o exercício da magistratura. É famosa a sua postura no caso da censura à revista "Realidade".

Mas, quando o ofício assinado por Décio Miranda, procurador-geral da República, repousou sobre sua mesa, Baleeiro titubeou. Era voz corrente, na época, que parlamentares da Arena (partido situacionista) e do MDB (oposição) queriam uma solução interna - talvez a suspensão de Moreira Alves por 40 dias - para evitar a cassação política por dez anos, almejada pelos militares. No primeiro da série de avisos, o ministro Lyra Tavares reproduz, irritado, uma pergunta que Moreira Alves teria feito em seu primeiro discurso, no dia 2 de setembro: "Quando o Exército não será um valhacouto de torturadores?".

Mais à frente, o ministro do Exército descreveu um trecho inteiro do segundo discurso, feito no dia 3, no qual Marcito, como era chamado pelos colegas de Parlamento, indignado com a invasão dias antes da UnB, pede um boicote "às moças, às namoradas, aquelas que dançam com os cadetes e freqüentam os jovens oficiais". O general não chegou a dizer o que queria, mas registrou estar "confiante" nas providências que o presidente Costa e Silva julgasse serem necessárias. Ofícios no mesmo tom foram igualmente encaminhados pelos ministros da Aeronáutica, brigadeiro Márcio de Souza Mello, e da Marinha, almirante Augusto Rademaker.

"Não sei se teria sido diferente"

Depois de ganhar sinal verde do presidente, o pedido de providências contra Márcio Moreira Alves foi bater no gabinete de Gama e Silva, a quem coube dar uma roupagem jurídica ao desejo militar. Professor de Direito, Gama atestou ter feito "meticuloso estudo sobre o problema" para concluir que cabia a sanção prevista no Artigo 151 da Constituição. Mas não era bem assim. Outro artigo, o 34, jogaria por terra, se aplicado, qualquer pretensão do ministro. Mesmo assim, ele seguiu para a Procuradoria Geral da República. Numa época bem anterior à Constituição de 88, que daria um novo e independente papel ao Ministério Público na vida social, o procurador Décio Miranda precisou de apenas nove dias para receber, analisar e concordar com o pedido.

Finalmente, o despacho de Aliomar Baleeiro, provocado pela representação de Décio Miranda, desaguaria na Câmara no dia 6 de novembro, acendendo o estopim da crise. Mas o que teria acontecido se, valendo-se da tese da inviolabilidade, o ministro do Supremo tivesse decidido arquivar o pedido?

- Não sei se teria sido diferente. O que sei é que não pode ser imputado ao discurso infeliz do Márcio. Os responsáveis são aqueles que assinaram. O pretexto poderia ter isso outro. Acabariam encontrando algum - diz o professor Adriano Pilatti.