Título: Os guarda Costa da ditadura no Congresso
Autor: Otavio, Chico
Fonte: O Globo, 09/12/2008, O País, p. 8

Grupo de 141 deputados, fiel a Costa e Silva, votou por cassação de Moreira Alves; Arena ficou dividida.

Por alguns instantes, a ditadura parecia ter chegado ao fim. O plenário acabava de rejeitar o pedido de licença para cassar o deputado Márcio Moreira Alves (MDB-RJ), no dia 12 de dezembro de 1968, quando os deputados vitoriosos cantaram o Hino Nacional e as galerias lotadas explodiram de alegria. Em seguida, todos se calaram e esperaram a reação do presidente da Câmara, José Bonifácio. Seu gesto seria uma ducha de água fria.

- Zezinho deu uma banana para todos - garante o jornalista Carlos Chagas, que na época trabalhava no GLOBO.

A banana de Zezinho, que abafou a euforia efêmera do Parlamento, simbolizou também a opção tomada por parcela da elite política brasileira quando a nação se viu diante da encruzilhada. Depois daquele dia, o Brasil mergulharia nas trevas do AI-5, anunciado no dia seguinte, e o Congresso Nacional só abriria dez meses depois, ainda assim para formalizar a condução do futuro general-presidente, Emílio Garrastazu Medici.

Desde que a sociedade brasileira passou a pensar, com alguma liberdade, os episódios que provocaram o ato, a Câmara sempre foi lembrada pela atitude ousada dos 216 deputados que votaram contra a licença para processar Moreira Alves, dos quais 94 eram da Arena, o partido governista. Mas pouco se falou sobre os que, na encruzilhada, seguiram o caminho apontado pelos quartéis: os 141 deputados que votaram a favor do pedido, sintonizados com os interesses da linha-dura.

Na terceira reportagem da série sobre o AI-5, O GLOBO mostra que o regime militar, mesmo nos períodos mais agudos, nunca deixou de ter uma bancada fiel no Congresso. O gaúcho Clóvis Stenzel, um dos deputados radicais, aliado de primeira hora dos generais, conta que o grupo tinha nome: os "guarda Costa", pela fidelidade ao presidente Costa e Silva:

- Eu não era o único, mas era o líder. Tenho a relação de todos os guarda Costa, coisa que ninguém tem - garante o ex-deputado arenista.

Grupo defendia regime fielmente

Stenzel, que na época fora acusado de insuflar os militares a endurecer, conserva em casa a carta-compromisso assinada pelo grupo no ano anterior. Entre os pontos centrais, seus objetivos eram "defender fielmente o governo revolucionário" de Costa e Silva, "lutar contra revogação dos dispositivos fundamentais da administração revolucionária" e denunciar na tribuna "todas as táticas empregadas pelos agitadores". Líder do movimento, ele faz questão de enumerar outros integrantes:

- Parente Frota, Demar Pizzi, Aderbal Jurema, Albino Zen, Ari Alcântara, Dario de Almeida, Josias Ferreira Gomes, Janari Nunes e Clóvis Stenzel. Esses eram os guarda-costas do governo - recorda-se.

Os interesses ideológicos, contudo, não eram os únicos a induzir governistas e rebeldes. O professor Carlos Fico, do Departamento de História da UFRJ, minimiza até o papel dos arenistas que, apesar das pressões de Costa e Silva, votaram contra a licença:

- Não sei se havia uma ala rebelde que agia inspirada pelo ideal da distensão, mas, certamente, havia setores da Arena que estavam insatisfeitos por não terem atendidos os seus pleitos - sustenta.

Antes de seguir para o plenário, o pedido para processar Márcio Moreira Alves passou pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. Como o Parlamento estava para entrar em recesso, já que dezembro se aproximava, o presidente da CCJ, deputado Djalma Marinho (Arena-RN), recebido pelo presidente da República, no Rio de Janeiro, conseguiu convencer Costa e Silva a aceitar a transferência da decisão para março.

Ao retornar a Brasília, Marinho mal teve tempo de anunciar o acerto. O adiamento que esvaziaria a crise estava sepultado. Influenciado por generais, pelo ministro da Justiça, Gama e Silva, e pelo líder do governo na Câmara, deputado Geraldo Freire (Arena-MG), Costa e Silva mudou de idéia e exigiu a votação já, com a convocação da Câmara, em pleno recesso de fim de ano, para decidir a sorte de Márcio Moreira Alves.

O ex-deputado Raphael de Almeida Magalhães, da Arena, rebelde ao governo e contrária à cassação, reconhece a presença de parlamentares entre as vozes que fizeram Costa e Silva mudar de idéia. Para ele, o presidente foi iludido de que o governo teria votos suficientes para vencer.

- Havia radicais de ambos os lados. Não podíamos deixar isso escapar de dentro do Congresso. Havia seis ou sete agentes provocadores lá dentro. Tentávamos uma saída negociada, como uma sanção interna, mas esses radicais apostavam no fechamento do Congresso - conta.

Disputa interna acirrou a crise

Para garantir a aprovação do pedido na CCJ, Geraldo Freire trocou os nove arenistas que votariam contra. Raphael identifica hoje, nesta manobra, algo além de uma questão ideológica. Para ele, os deputados não eram movidos apenas pelos ideais "revolucionários" de 1964:

- Além da questão ideológica, havia ciúmes. Havia uma disputa interna por prestígio na Arena. Não votar o pedido seria a derrota da liderança. Ninguém acreditava que a licença seria negada.

O historiador Carlos Fico disse que a insatisfação dos arenistas vinha se constituindo há algum tempo, sobretudo por conta de nomeações e outras coisas típicas do cotidiano da relação Executivo/Congresso. Tanto quanto qualquer outra motivação, os cargos e verbas federais pesavam na fidelidade arenista.

O ex-ministro Paulo Brossard, na época deputado oposicionista, lamenta o adesismo radical dos parlamentares governistas, mesmo em tempos de ditadura:

- Eu disse uma vez, naquela ocasião, que o adesismo leva a aprovar tudo. Se o Fidel Castro se tornasse vitorioso, os adesistas iriam pendurar barba de bode, para dizer que já eram fidelistas naquele tempo. Como a barba não cresce de uma hora para outra, eles iriam colar com goma para mostrar que já eram.

Para Brossard, os civis exerceram um papel fundamental para o prolongamento do regime:

- O elemento militar foi predominante, mas se não houvesse uma submissão civil tão grande no período isso não teria durado o tempo que durou. Essa adesão em nome de interesses, da covardia, da poltroneria e até de outros interesses. Mas a covardia é muito grande - criticou.

Motivados apenas por disputa de espaços de poder, os conflitos entre um grupo de arenistas e os assessores mais duros de Costa e Silva começaram no governo Castelo Branco. Carlos Fico explicou que Costa e Silva não era o nome desejado e esses homens - como Daniel Krieger, presidente da Arena ? eram muito ligados a Castelo.

Castelo previa endurecimento

Krieger contou mais tarde que Castelo, já depois da posse do Costa e Silva, teria dito a ele que estava prevendo o endurecimento (algo como o AI-5, que de fato viria) e o pediu para mobilizar a Arena numa posição contrária, enquanto ele cuidaria dos militares:

- Diz Krieger que isso só não aconteceu porque Castelo morreu. Não sabemos se isso é verdade, mas, mesmo que não seja, indica a postura de rejeição aos duros desse grupo. Entretanto, alguns episódios de indicações e ocupação do espaço político também fomentaram o mal-estar que, inicialmente, conflitava os parlamentares e alguns assessores de Costa e Silva.

Com o AI-5, em 13 de dezembro, o plenário festivo do dia anterior cairia em silêncio. Atônitos, os líderes de oposição que haviam colhido uma vitória histórica na véspera se sentiram encorajados a ir ao gabinete do presidente da Câmara, José Bonifácio, pleitear a convocação imediata de uma sessão extraordinária.

- O senhor é o presidente da Câmara e pode convocá-la a qualquer momento. É o seu dever - alegou o secretário-geral do MDB, deputado Martins Rodrigues, do Ceará.

- Não existe mais Câmara - teria respondido, provocando uma frase que entraria para a antologia da Câmara. O deputado Celso Passos (MG) teria reagido: "Seja mais Bonifácio e menos Zezinho".

Fico disse que, além dos arenistas insatisfeitos com os velhos problemas das nomeações, também havia divisões entre os militares, "essas nem tão pragmáticas", já que originavam-se em questões de concepção (radicalizar ou não a repressão, nacionalismo ou abertura econômica para o exterior, sucessão presidencial) e alguns políticos arenistas acreditavam que Costa e Silva estava enfraquecido em função de sua suposta incapacidade de coibir as críticas que recebia, especialmente as de Carlos Lacerda, muito duras, e que levaram, inclusive, alguns militares a quererem assassinar o ex-governador:

- O AI-5 também serviu para eliminar pretensões de arenistas e militares críticos.

Em estudo sobre a Arena, "Partido Político ou Bode Expiatório", a historiadora Lúcia Grinberg disse que o partido governista acabou pagando um preço alto pelo fracasso no caso Márcio Moreira Alves. Para ela, enquanto regime presidencialista, quando o presidente da República não tem o apoio do seu partido, em geral, há crises internas, negociações sobre a orientação de suas políticas, busca de apoio em outros partidos ou mesmo punições para alguns correligionários.

- No regime autoritário, quando o partido não apóia o presidente da República, cai. Foi esse fato, sem dúvida, que levou o Executivo a reorganizar a Arena em 1969, modificando substancialmente o perfil das lideranças autorizadas pelo partido.

"Civis eram quase fantoches"

Muitos dos arenistas derrotados descartados pelo AI-5 voltariam mais tarde, como foi o caso de Clóvis Stenzel, líder do governo Medici no auge da repressão política.

- Nós éramos líderes e não sabíamos das coisas que aconteciam das torturas. Não sabia nada. Era uma coisa entre os militares. Os civis eram quase fantoches.

COLABOROU: Daniela Uequed

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