Título: Trabalho infantil é farto e barato em feira livre de Caruaru
Autor: Camarotti, Gerson; Vasconcelos, Adriana
Fonte: O Globo, 21/12/2008, O País, p. 10

Na "Sulanca", crianças perdem aula para ganhar R$50 por jornadas de 22 horas, carregando ou vendendo produtos para ajudar pais

Letícia Lins

CARUARU ( PE) No início de cada semana, as ruas centrais da cidade de Caruaru (a 130 quilômetros de Recife) parecem um formigueiro. São cerca de 15 mil barracas, 150 mil pessoas de todos os pontos do Nordeste e um volume de vendas que chega a R$15 milhões por dia, segundo cálculos da prefeitura. É o movimento provocado pela Feira da "Sulanca", nome dado na região agreste ao comércio de confecções populares. A pujança, no entanto, escancara um grave problema social: a exploração da mão-de-obra infantil. Tanto para trabalhos noturnos e pesados - como carregar frete - quanto para os mais leves, como a venda de blusas, shorts, saias, calças, roupas íntimas.

Só na rua principal da feira, em um trecho de pouco mais de cem metros de extensão, a equipe do GLOBO contou 52 crianças trabalhando, à luz do dia e à vista das autoridades. Pelo menos 80% das crianças entrevistadas haviam perdido a aula para ajudar os pais ou trabalhar para terceiros.

- Estudo à noite, mas pelo menos uma ou duas vezes por semana falto à aula para trabalhar em alguma feira em Caruaru. A da Sulanca é a que a rende mais. Chego aqui às duas da tarde da segunda-feira, começo a pegar frete e só saio ao meio-dia da terça-feira - conta X, de 14 anos, que passa o dia empurrando seu carrinho de ferro enfrentando a multidão, sob um sol escaldante. Chega a levar mais de 200 quilos por viagem.

A longa jornada rende R$50 a X., que cursa a 5ª série, mas mal sabe ler. Para ajudar os pais, que têm mais quatro filhos, ele trabalha desde os 7.

Y., de 14, também falta à escola. O pai é servente e a mãe faz faxina e lava roupa. Ele sai de casa às 6h30m e retorna ao meio-dia com R$150, em média, vendendo CDs piratas na feira. M., de 10, mora no município de São Caetano, a 23 quilômetros de Caruaru. Saíra às 5h da cidade e perdera a escola para ajudar o pai a vender relógios. Como o pai não apareceu, ele tomava conta da banca. Uma vizinha de tabuleiro, que vendia flores artificiais, apressou-se a dizer que "estava tomando conta do menino".

A., de 11, está na 5ª série, mas também faltou à escola na terça-feira para ajudar a mãe a vender mercadorias na feira. A mãe disfarça. Afirma que a filha foi fazer compras de Natal e ficou na rua para ajudá-la. Diz que a menina já passou de ano, embora a criança informe que ficou em matemática. O mesmo argumento da mãe de E., de 10. Ela diz que o menino nunca foi à feira e que só estava lá porque já concluiu o ano letivo.

- Toda terça perco aula. Venho para a feira ganhar uma graninha. O dinheiro dá para o lanche - diz ele.

Despachado, parecendo um vendedor experiente e utilizando as mesmas artimanhas dos ambulantes adultos, ele chega a dobrar os preços de algumas mercadorias. Quando oferece uma blusa por R$10, a mãe o repreende, lembrando que é R$5.

R., de 15, mora em São Caetano e estuda à noite. Diz que o trabalho não atrapalha. Ela vende manequins de loja e ganha R$20 por feira. Não tem pai, a mãe é garçonete e afirma precisar de dinheiro para comprar "umas coisinhas". G., de 13, também falta à aula todas as terças-feiras. Vende jeans no meio da rua para o pai, que não foi encontrado na feira.

Aos 9, J. tem função certa: atrai clientes se esgoelando em cima do banco, em meio a um barulho ensurdecedor de carros de som, carrocinhas com CDs piratas e os pandeiros e cantos dos emboladores. O irmão I., de 13, também vende roupas. Um pouco mais adiante, W., de 14, empurra um carrinho cheio de frutas. Trabalha das 5h às 11h, ganha R$20 por feira. Os patrões são os próprios pais, muitas vezes. A maioria tenta disfarçar. Uma indaga se a repórter é "do Conselho Tutelar". Diante da resposta negativa, Maria Sousa (nome fictício), nascida na cidade sertaneja de Tabira e há 30 anos na feira, conta por que suas crianças trabalham ali:

- Tive dez filhos e criei nove dos outros. Para a feira, todas as semanas vêm oito. Se eu for pagar a estranho, não tem como sustentar a família e os 23 netos. Boto tudo (sic) para trabalhar nas barracas. Se não fizer isso, não tem alimento. Quando o Conselho Tutelar chega, mando logo os meninos dormirem debaixo do banco. Hoje todo mundo perdeu o colégio, mas todos estudam.

P., de 11 anos, um dos filhos de Maria, está em uma turma do programa Acelera Brasil, no qual cursa a 4ª e a 5ª séries simultaneamente. O menino vende sutiãs sem qualquer inibição. Sabe qual o mais confortável, o que acomoda melhor os bustos grandes, os que aumentam os volumes dos seios.

- Tem que botar todo mundo para trabalhar. Se as peças fossem minhas, eu até podia contratar pessoas. Mas eu recebo pelo que vendo, e ganho o que apuro - justifica a mãe.

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