Título: O crime é organizado; o Estado não é
Autor: Franco, Bernardo Mello; Leali, Francisco
Fonte: O Globo, 12/01/2009, O País, p. 4

Presidente do TCU promete criar cadastro de gestores investigados por fraude e quer aproximar órgãos de controle.

O ministro Ubiratan Aguiar, empossado na presidência do Tribunal de Contas da União (TCU) no mês passado, promete criar um cadastro nacional de gestores condenados por irregularidades. O banco de dados, alimentado com informações de tribunais de contas estaduais e municipais, faria a listagem de administradores e políticos envolvidos com superfaturamentos e licitações fraudulentas. Aguiar defende mudanças na legislação para que a lista tenha efeito prático: gestor com ficha suja não poderia se candidatar. O novo presidente do TCU quer mudanças na lei para permitir o acesso do tribunal a dados sigilosos, reforçar o controle sobre gastos de estatais e garantir o pagamento das multas impostas pela Corte.

Bernardo Mello Franco e Francisco Leali

O senhor prometeu, ao tomar posse, aproximar o TCU de órgãos como o Banco Central, a Controladoria Geral da União, a Receita e a Polícia Federal. Por quê?

UBIRATAN AGUIAR: Fala-se muito em crime organizado. Eu sonho com um Estado organizado, em que os órgãos de controle se articulem em busca de mais eficiência. Hoje existem controles específicos. O Banco Central cuida de movimentação financeira, a Receita Federal cuida da evolução patrimonial, a Polícia Federal e o Ministério Público cuidam das investigações. Mas nós não conversamos.

Como seria a cooperação?

UBIRATAN: Vamos buscar uma ação compartilhada. Em que o TCU pode ajudar o Ministério Público na ação investigativa? Muitas vezes, eles ficam com uma pilha de processos, porque têm acesso à quebra de sigilos, e não sabem como fazer auditoria de tudo aquilo. Outras vezes, esbarramos na falta de informações que nós não temos, mas eles têm. Há uma emenda constitucional que nos dá acesso aos sigilos bancário e fiscal, via autorização da Justiça. Os órgãos de controle precisam ter as condições para exercer esse controle de forma efetiva. Isso fortaleceria a ação do Estado.

Faltam informações sobre a atividade dos outros órgãos de controle?

UBIRATAN: Hoje, o tribunal de contas de um estado condena um gestor municipal. Depois, bate aqui outro processo contra o mesmo gestor, e o TCU não sabe que ele já tem condenações. Então ele recebe a presunção de boa fé e primariedade, que não deveria ter mais. Um passo seria fazer um banco nacional de dados, alimentado por todos os órgãos de controle. Um cadastro nacional de gestores que respondem a processos. Como existe a questão do sigilo, só teria senha para acesso quem tem autorização legal.

Os políticos listados nesse cadastro sofreriam algum tipo de punição, caso fique comprovado que desviaram recursos públicos?

UBIRATAN: Qualquer cidadão brasileiro, se está devendo, vai para o cadastro do Serasa e não pode mais comprar em lugar nenhum. Nós inabilitamos empresas para concorrer em licitações públicas. Um cadastro nacional de gestores daria um retrato falado dessas pessoas. Em relação ao gestor, também deve haver um momento em que ele não pode ser candidato a cargos públicos, se o TCU julgou que a sua ação foi dolosa (intencional).

Ou seja: o governante também poderia ser declarado inidôneo.

UBIRATAN: Sim, respeitado o trânsito em julgado (caso não haja mais possibilidade de recurso).

Segundo o Ministério Público, os gestores só pagam 1% das multas aplicadas pelo TCU. Por que isso acontece?

UBIRATAN: Leio muito na imprensa que o tribunal multa, mas ninguém paga. Nós cumprimos a nossa parte. Aí chega um momento em que encaminhamos a decisão à Advocacia Geral da União, para que ela possa reaver os recursos desviados, e a questão vai para a instância judicial. Então o gestor começa a se desfazer do seu patrimônio. O processo se alonga, tornando todo o nosso trabalho praticamente ineficiente.

Como reverter esse processo de impunidade?

UBIRATAN: Uma das formas é a revisão dos códigos processuais. Em nome do amplo direito de defesa, que não pode ser um abuso, hoje se permite uma série de recursos que torna os processos intermináveis. A revisão se faz mais do que urgente. No primeiro semestre de 2008, as multas chegaram a R$600 milhões. Mas isso será recebido quando, e como? A sociedade comenta que nós somos lentos, morosos, mas nós cumprimos a lei. Se ela nos permitisse ser mais ágeis, nós seríamos.

Ainda há caixas-pretas na aplicação de verbas federais?

UBIRATAN: O tribunal tem competência para fiscalizar todos os órgãos da administração direta e indireta. Ele chega aonde está o recurso público. Ao que me parece, o Congresso está disposto a discutir a Lei de Licitações. Seria um bom momento para rediscutir também o estatuto jurídico das estatais que exercem atividade econômica. Há uma demanda constante, junto ao Supremo Tribunal Federal, por mandados de segurança contra decisões do TCU que se referem a licitações.

O senhor está se referindo à Petrobras?

UBIRATAN: A outras estatais, mas principalmente à Petrobras. Queremos que as estatais sejam exitosas, que tragam bons números nos seus balanços. Mas também é preciso haver transparência, economicidade, porque elas envolvem recursos de toda a sociedade. Seria uma contribuição grande do Congresso discutir o estatuto jurídico que define contratos e licitações das estatais. Isso nos daria base legal para julgar.

O que é preciso mudar?

UBIRATAN: A Lei de Licitações impõe limites para cada modalidade de compra: carta-convite, tomada de preço e concorrência. A Petrobras procura se valer de um decreto que é fruto da Lei do Petróleo para fazer plataformas que custam R$1 bilhão ou R$2 bilhões por carta-convite. Os argumentos podem ser os mais plausíveis, de que há necessidade, urgência. Se o tribunal decide que é preciso seguir a Lei de Licitações, você pode estar certo de que no dia seguinte virá um mandado de segurança. A gente poderia evitar uma queda-de-braço desnecessária. Todos nós somos Estado, mas eu às vezes fico pensando que temos patrões diferentes.

O senhor analisa contas públicas no TCU desde 2001. Houve evolução na qualidade dos gestores?

UBIRATAN: Os avanços não têm sido os desejados. A escolha do gestor é uma responsabilidade da sociedade, mas também, em primeiro lugar, dos partidos. O candidato deve ter o mínimo de conhecimento sobre atividade orçamentária, planejamento de gestão. Além disso, é preciso que tenha uma conduta sem máculas, para que a sociedade possa escolher com mais tranquilidade.