Título: O Brasil e Gaza
Autor: Abdenur, Roberto
Fonte: O Globo, 12/01/2009, Opinião, p. 7

Desde a resolução da ONU que em 1948 deu origem a Israel, sustenta o Brasil inabalável compromisso com o Estado judaico. Não menos firme é seu compromisso com a formação de um Estado palestino. Unem-nos à região laços históricos e vínculos humanos. O Brasil foi o único país latino-americano convidado para a Conferência sobre a Questão Árabe-Israelense, realizada nos EUA em 2007. Para tal tinha as credenciais de suas equilibradas posturas nas Nações Unidas, fluido diálogo com os países árabes (reforçado pela Cimeira entre América do Sul e aquelas nações) e bom entendimento com Israel (que tratamos de aproximar do Mercosul mediante acordo comercial).

Um grave erro veio, contudo, a erodir nossa credibilidade. Em recente viagem a Teerã, fez o chanceler convite ao presidente Ahmadinejad para visita ao Brasil. Nada mais inoportuno, descabido e contraproducente. A grande nação iraniana merece respeito, mas diferente é o caso de um chefe de governo desgastado por quadro econômico caótico, e sob risco de perder as próximas eleições presidenciais; um presidente que nega o Holocausto e prega a destruição de Israel; um governo sob sanções do Conselho de Segurança da ONU; que suscita preocupações não só nos EUA, mas na Europa, onde três países próximos ao Brasil - França, Alemanha e Reino Unido - tentam pressionar Teerã a abdicar de um programa nuclear fundadamente sob suspeitas de buscar a bomba; e um país que suscita temores em seus vizinhos árabes, tanto por seu poderio militar quanto por sua crescente influência (por cortesia de Bush) em Iraque, Síria e Líbano.

A presente hecatombe em Gaza levou o Brasil a tomar iniciativas para reintroduzir-se no círculo mais amplo de atuação em torno da questão.

O professor Marco Aurélio Garcia, assessor direto do presidente Lula, fez dura crítica a Israel, acusando-o de "terrorismo de Estado". Meu coração até que simpatiza com essa afirmação. Mas minha cabeça de diplomata, "viciada" pelo cuidado em evitar que palavras se tornem petardos capazes de infligir indesejáveis danos políticos, lamenta essa dissonância em relação à cautela com que se conduz o chanceler. Precisa o Brasil mover-se com serenidade, objetividade e pragmatismo.

Em diplomacia há ocasiões em que cabem gestos, por assim dizer, "bonitos", mesmo que não por si sós suficientes para alterar maiormente um cenário de conflito. São gestos que marcam posições e fincam estacas para futuras jornadas diplomáticas. Poderíamos agora enviar ao Egito e à Jordânia, para atuarem nas áreas próximas a Gaza (e posteriormente, acalmada a situação, atuarem dentro do território), números significativos de equipes médicas, com hospitais de campanha, medicamentos e instrumentos cirúrgicos. Talvez pudesse mesmo o Brasil coordenar-se com alguns de nossos parceiros na América do Sul - companheiros de trabalho na exitosa missão no Haiti - para juntarmos esforços em tal sentido. E mais "bonito" ainda seria se, em expressão sincera do que somos como sociedade livre de conflitos étnicos e religiosos, parte da ajuda enviada proviesse de entidades humanitárias não só islâmicas e cristãs, mas também judaicas - todas unidas na solidariedade com as vítimas dos dois lados.

ROBERTO ABDENUR foi secretário-geral do Itamaraty e embaixador no Equador, na China, na Alemanha, na Áustria e nos EUA.