Título: As mentiras que os pais contam
Autor: Mariz, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 23/03/2009, Política, p. 07

A síndrome da alienação parental, quando o portador da guarda difama o ex para os filhos, é estudada há décadas. Agora, sai da psicologia e vira assunto de Justiça

Quinze anos de raiva, mágoa e ressentimento na vida de Rafaella Mendes poderiam ter sido evitados. Depois da separação de seus pais, quando ela tinha 8 anos, a mãe passou a denegrir a imagem do ex-marido dentro de casa. A campanha difamatória era tão forte que Rafaella e o irmão sentiam vergonha de dizer que o passeio com o pai no fim de semana havia sido divertido. ¿Achava que minha mãe ficaria orgulhosa se eu o tratasse mal. Então, começou o afastamento. Me lembro que ele tentava ver a gente, mas fomos ficando cada vez mais distantes¿, lembra a publicitária de 29 anos.

Só depois de começar a fazer terapia, aos 22 anos, Rafaella intuiu que um grande engano havia ocorrido. ¿Me liguei para o fato de que deveria escutar o outro lado. Procurei meu pai depois de anos sem vê-lo, soube do quanto foi difícil também para ele, e hoje nos damos bem¿, afirma a jovem. Casos de manipulação da criança, praticada geralmente por aquele que tem a guarda, contra o outro genitor, estudados pela psicologia há 24 anos, são mais comuns do que se pensa. Aos poucos, o fenômeno denominado de alienação parental tem saído dos consultórios terapêuticos para ganhar espaços em delegacias de polícia e nos tribunais. Um documentário chamado A morte inventada, que será lançado em 1º de abril no Rio de Janeiro, contará algumas histórias tristes e perturbadoras de alienação parental. ¿Escolhemos a data para falar dessas grandes mentiras que mães ou pais inventam para seus filhos simplesmente para fazê-los odiar o ex-companheiro¿, destaca Daniela Vitorino, produtora do longa de 80 minutos. Psicóloga e advogada especialista em direito de família, Alexandra Ullmann considera o título do filme muito apropriado. ¿A alienação parental, de uma forma simples, é exatamente a maneira pela qual o genitor mata, cotidianamente, a figura do outro genitor na vida e no imaginário do filho¿, afirma a especialista no assunto.

Vingança A motivação, segundo Alexandra, é vingança. ¿Na maior parte das vezes, nem tem um motivo sério para o ressentimento, como infidelidade ou maus-tratos. Notar que o ex-companheiro não está sofrendo com o fim do relacionamento pode ser o suficiente para desencadear o processo¿, diz a psicóloga. Igor Nazarovicz Xaxá teve de lutar muito para poder conviver com a filha. Pouco tempo depois da separação, após cerca de cinco anos de vida conjugal, a mãe da pequena Anna Júlia, 3 anos, disse que ele não iria mais ver a menina. O pai teve, então, de brigar na Justiça pelo direito. Hoje, ele pode ver a filha em finais de semana alternados e ficar em sua companhia nos primeiros 15 dias de férias.

Em janeiro de 2008, foi a primeira vez que Igor, morador de Brasília, passou a quinzena a que tem direito com a filha. Na hora de devolver a criança para a mãe, ele mostrou um arranhão de menos de 3cm que a garota conseguiu, brincando num parquinho. ¿O ferimento já estava cicatrizado, mas fiz questão de contar o que havia ocorrido¿, lembra. Dias depois, Igor recebeu a notícia de que a ex-mulher estava o acusando de ter queimado a filha com um cigarro. ¿Eu não fumo, minha atual mulher não fuma. Foi tão absurda a história que o Ministério Público arquivou a denúncia¿, indigna-se.

Mas o episódio não foi o único a levar o bacharel em direito de 29 anos à polícia e à Justiça. Quando saiu a decisão judicial implementando o dia de visita, a ex-esposa não queria deixar a criança sair de casa. ¿Fui com auxílio policial e com o oficial de Justiça para que a decisão fosse cumprida. Imagine o desgaste para todo mundo¿, lamenta. Hoje, amparado judicialmente, Igor vai religiosamente ver Anna Júlia, de ônibus, em finais de semana alternados, na cidade onde a menina mora com a mãe, a 30km da capital de São Paulo.

Sensibilidade Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família do Distrito Federal e com experiência de 11 anos como juiz da área, Arnoldo Camanho de Assis ressalta que o Judiciário está mais sensível aos casos de alienação parental, principalmente em função de palestras e cursos sobre o tema. ¿Há várias nuances quando o casal está se separando que têm de ser observadas pelos magistrados¿, diz Camanho, atualmente desembargador no Tribunal de Justiça do DF. De acordo com ele, ficando comprovada a alienação parental, quem a praticou pode perder a guarda da criança.

Na tentativa de dar mais ferramentas a magistrados para punirem e evitarem a alienação parental, o juiz Elízio Luiz Perez elaborou o Projeto de Lei 4.053/2008, apresentado pelo deputado Regis Oliveira (PSC-SP). O texto estabelece algumas condutas que caracterizam o uso da criança como objeto da agressividade de um dos genitores, tais como impedir o contato com o filho ou mudar de endereço sem avisar. ¿Fixamos, no projeto, algumas medidas que o juiz pode adotar, sendo uma delas a advertência, aplicação de multas ou a perda de autoridade parental. São possibilidades que já existem no nosso ordenamento jurídico, mas estão dispersas¿, afirma Elízio.