Título: Brasa dormida
Autor: Lampreia, Luiz Felipe
Fonte: O Globo, 06/02/2009, Opinião, p. 7

A brevíssima reintrodução do sistema de licenciamento prévio para as importações foi uma trapalhada, mas sobretudo mostrou que nossa velha paixão por Colbert - o inventor do protecionismo - é como brasa dormida que pode acender-se ao primeiro sopro. Afinal, o romance é secular.

No imaginário do povo, ficou registrada como verdadeira a frase do candidato Collor na campanha eleitoral de 1989 descrevendo nossos automóveis como carroças. A abertura feita pelo governo em 1990/91 foi, sem dúvida, a alteração mais profunda de nossa política comercial em 50 anos. Seus benefícios, polêmicos à época, são um consenso hoje. Eis que, aos primeiros sinais de contração da economia, ressurgem os apologistas da panaceia protecionista. Em geral, somos muito eloquentes na denúncia do protecionismo de outros países, mas gostamos de utilizá-lo. Isso me recorda uma frase do grande filme de Alain Resnais - "Hiroshima, meu amor" - em que o personagem afirma que "moralidade duvidosa é a moralidade dos outros".

É justo reconhecer que tal impulso não é privilégio dos burocratas de Brasília. Os congressistas do Partido Democrata em Washington estão preconizando cláusulas de buy American na legislação de estímulos econômicos do presidente Obama. O governo Sarkozy enfrenta pressões cada vez mais fortes e pode também vir a tomar medidas do gênero. Até na Inglaterra, mãe do liberalismo comercial, surgiram diversas manifestações contrárias à concorrência internacional. E nem falemos da Argentina, sempre uma das campeãs mundiais do esporte. Mas, como disse a respeitada revista "The Economist", "o protecionismo é individualmente atraente mas coletivamente inócuo".

Na reunião de Davos, o ministro sul-africano Trevor Manuel afirmou que os países africanos correm o risco de "descarrilhamento" se forem isolados por seus parceiros comerciais. Outras vozes, insuspeitas de serem "neoliberais", têm advertido para as armadilhas contidas na intervenção estatal. Vladimir Putin alertou que "tais políticas podem ser contraproducentes". O primeiro-ministro chinês Wen Jiabao apelou para que os líderes mundiais "permaneçam vigilantes" em seus esforços para conter o protecionismo. Na mesma linha pronunciaram-se o ministro do Comércio do Egito e o da Índia. Já o secretário-geral da OCDE, em artigo no site da organização, afirmou que "só faremos a crise piorar se sucumbirmos ao canto de sereia do protecionismo e do nacionalismo tacanho". O próprio presidente Lula foi no ponto certo ao dizer que "é um equívoco entender que o protecionismo resolve o problema da crise. O protecionismo, neste momento, vai agravar a crise". Ainda bem.

É lógico que devemos também estar vigilantes contra ameaças estrangeiras de dumping e outras formas de concorrência desleal. É bastante provável que ocorram episódios do gênero, que ameaçariam os produtores nacionais. Nesse caso, as normas da Organização Mundial do Comércio e a legislação brasileira autorizam medidas fortes para remediar a situação. Nossos órgãos governamentais especializados fariam melhor em esmerar-se na vigilância e na aplicação desses recursos do que em conceber medidas retrógradas, incompatíveis com nossos compromissos na OMC e capazes de gerar arbitrariedades, como a restauração da gaveta burocrática chamada de licença prévia de importação. É mais cômodo refugiar-se atrás de uma arma discriminatória e poderosa do que fazer o caminho complexo da investigação e estabelecimento de provas de deslealdade comercial. Mas isto tem seu preço na medida em que também nos expomos a práticas idênticas e contribuímos para a desmoralização do sistema jurídico que rege o comércio internacional.

Estamos apenas no começo de uma crise inédita no após-guerra. Estima-se que o comércio mundial vá sofrer uma contração de 2,8%, comparada com um crescimento de 4,1% em 2008. Ninguém pode prever o futuro, nem excluir a hipótese de um agravamento da saúde econômica do mundo. Porém, o recurso a medidas protecionistas só pode acelerar a velocidade de propagação da recessão.

O Brasil precisa amarrar-se ao mastro, como Ulisses na "Odisseia", para não cair na sedução das sereias.

LUIZ FELIPE LAMPREIA foi ministro das Relações Exteriores (1995-2001).