Título: Sonhos deixados no lixo
Autor: Rangel, Juliana
Fonte: O Globo, 08/02/2009, Economia, p. 27
Crise achata renda de catadores em até 80%. Desemprego ameaça 1,7 milhão de pessoas.
Aos 57 anos, a nordestina Iraci Moreira se orgulha em dizer que "criou seus três filhos no lixo". Catadora desde que chegou ao Rio, aos 17 anos, ela ensinou a profissão a dois deles, e hoje a família se dedica à cooperativa Beija-Flor em um lixão na favela Kelson"s, na Penha, subúrbio carioca, com 26 participantes. Até meados de 2008, as perspectivas eram boas: os preços dos metais subiam, a indústria produzia a todo vapor e era possível tirar quase um salário mínimo por mês com a reciclagem. Em janeiro, a desaceleração global bateu forte no setor: os rendimentos de Iraci foram de apenas R$80 - uma redução de 80%. Nos últimos dias, ela incorporou com desenvoltura os temas da crise financeira e do desaquecimento industrial ao seu discurso.
- Estamos de um jeito que só Deus sabe. Pedi dinheiro em meu nome porque o banco não queria emprestar à cooperativa. Peguei R$27 mil em outubro, fui comprando material e, quando começaram a ligar e as firmas foram baixando os preços e as encomendas, tive um prejuízo grande com o juro alto. Não sei como vou pagar o banco. E, com o nome sujo, fico sem ter direito a comprar nada - diz.
As férias coletivas no setor automotivo, a suspensão de produção de alumínio em grandes companhias e a redução de encomendas de embalagens já levaram a uma queda de 30% a 84,4% no preço dos produtos recicláveis.
O Sindicato das Empresas de Sucata de Ferro e Aço (Sindinesfa) estima que a reciclagem, como um todo, emprega 1,7 milhão de pessoas, direta e indiretamente, entre catadores e trabalhadores da indústria de beneficiamento do lixo. Apenas no setor de sucatas, a ociosidade chega a 50%.
CSN e ArcelorMittal cancelaram pedidos
Segundo o secretário-executivo do Sindinesfa, Elias Bueno, grandes empresas, como ArcelorMittal e CSN, suspenderam pedidos.
Nas sucateiras intermediárias, que compram dos catadores e transformam o material para vendê-lo às grandes companhias, Bueno estima que as demissões superarão a quantidade estimada inicialmente, de 1.500 empregados. Sem contar os 800 mil catadores de lixo, sufocados na base da pirâmide com rendimentos mais baixos e que poderão desistir da profissão.
O diretor da CSN Márcio Lins confirmou a suspensão das encomendas. Ele explicou que sempre que há retração de mercado acima de 15%, a geração de sucata interna da empresa supre as necessidades da aciaria.
A ArcelorMittal Aços Longos informou apenas que a demanda por sucata acompanha o comportamento do mercado de aço.
Aos 60 anos, o ex-auxiliar de serviços gerais Ancelmo Botelho passa o dia sob o sol quente, enchendo e empurrando um carrinho de produtos recicláveis para vendê-los a cooperativas do Rio. Até o ano passado, a féria do dia era de R$20.
- Agora, tiro no máximo R$5 ou R$6 - diz.
Considerando 20 dias de trabalho, sua renda caiu de R$400 para R$100 - ou 75%.
- Minha mulher é aposentada do INSS e paga as despesas da casa. Eu só consigo ajudar um pouquinho - lamenta.
Segundo o diretor da sucateira Balprensa, Marco Aurélio Borgerth, um carrinho inteiro só de materiais ferrosos valia antes R$30. Hoje, os "carrinheiros", como são chamados os carregadores, ganham no máximo R$10.
- Não deixei de comprar das cooperativas, mas estou pagando menos. As indústrias não estão encomendando nada e estão limitadas a comprar de acordo com o que vão produzir. Como cortaram a produção, não compram.
O presidente da Cooperativa Rio Cop, José Estácio, é um dos líderes do movimento nacional dos catadores no Rio. A Rio Cop tem convênios com empresas e patrocínio de grandes companhias, que doaram caminhões, por exemplo. Ainda assim, a situação é difícil.
- Nunca vi uma crise como essa. Fomos afetados em cheio mesmo, e tivemos nossos ganhos muito espremidos - desabafa.
O preço do papelão, por exemplo, caiu de R$0,32 para R$0,05 o quilo - ou 84,4%.
- Os catadores nem estão pegando mais papelão na rua e muitas cooperativas pequenas fecharam. Estamos negociando um galpão de 18 mil metros quadrados para juntar nosso material e negociar diretamente com as empresas porque as intermediárias estão aproveitando para comprar bem barato e depois ter lucro de 1.000%, quando a situação melhorar - conta Estácio.
A Cooperativa de Segundo Grau, como é chamado o projeto, tem 32 grupos associados.
- Temos que organizar a categoria para lutar pelos nossos direitos. Catador de lixo não é pobre coitado, não. É uma profissão bonita - defende o presidente da Cooperativa Rio Cop.
O diretor do Compromisso Empresarial para Reciclagem (Cempre), Andre Vilhena, que representa as grandes indústrias, diz que há uma desaceleração sazonal nesta época do ano. Mas, dessa vez, avalia, o efeito foi ampliado pela desvalorização das commodities no exterior e pela queda nas exportações.
- Espero que esse processo seja o mais curto possível para que a economia retome o rumo e a gente volte para o caminho normal - torce.
O BNDES tem desde outubro de 2007 um programa de apoio a cooperativas de catadores de materiais recicláveis com recursos não-reembolsáveis da ordem de R$42 milhões. Segundo o diretor de Inclusão Social do banco, Hélvio Gaspar, já foram desembolsados R$19 milhões.
- Vamos chegar a 55 cooperativas na nossa carteira. Até março, devemos ter desembolsado mais de metade dos R$42 milhões - conta.
O banco e o governo discutem a ampliação do programa. O objetivo é atender as 250 cooperativas registradas no movimento nacional de catadores de material recilável.
Desvalorização já dá mais trabalho à Comlurb
O problema, diz Gaspar, é que nem todas as cooperativas cumprem os pré-requisitos para acessar os recursos, como registro no movimento nacional e inclusão em programas municipais de coleta seletiva.
Enquanto o problema não é solucionado, a Comlurb, que cuida da coleta e da limpeza da cidade, vem tendo mais trabalho. Segundo o gerente de Coleta Seletiva da Área da Zona Sul, Jorge Otero Peixoto, o lixo reciclável que já vem separado é distribuído pela empresa às cooperativas. Até dezembro, eram 600 toneladas mensais. Em janeiro subiu 50%, para 900 toneladas. A razão? A ausência de catadores, que antes do caminhão da Comlurb passar vasculhavam no lixo materiais mais valiosos.
- Fazíamos todo o roteiro do nosso primeiro turno das 8h às 15h. Agora, ele tem ido até 20h. O turno que começa às 18h está entrando pela madrugada porque estamos precisando fazer várias viagens com o caminhão - conta.