Título: Brasília, uma ilha da fantasia imune à crise
Autor: Alvarez, Regina
Fonte: O Globo, 22/02/2009, O País, p. 5

Com emprego garantido e altos salários, funcionários públicos seguem comprando e aquecem a economia da capital.

Legenda da foto: O FUNCIONÁRIO aposentado Cláudio Júdice: sem medo de consumir.

BRASÍLIA. Crise? Que crise? Os altos salários pagos pelo setor público nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário mantêm a economia da capital federal aquecida, reforçando a imagem de que Brasília é uma ilha da fantasia, imune à turbulência global. Sem a ameaça de desemprego ou de redução de salários, os funcionários públicos continuam consumindo como se a crise global não existisse.

Essa condição privilegiada sustenta um mercado imobiliário em expansão - cujo metro quadrado é um dos mais altos do país - e movimenta o comércio de automóveis, que em janeiro cresceu 19,27%, contra uma média nacional de apenas 1,63%.

Nos últimos três anos, as vendas de veículos no Distrito Federal cresceram 42%, turbinadas pelos aumentos salariais concedidos aos funcionários públicos. Na média, os rendimentos do setor público são 4,1 vezes maiores do que a renda no setor privado, mas, em tempos de crise financeira, o fator mais valorizado é a estabilidade no emprego.

- Nossos clientes são funcionários públicos com renda média R$12 mil, que desfrutam vantagens como o crédito consignado. São clientes exigentes, que buscam veículos mais sofisticados - explica Ricardo Lima, presidente dos Concessionários e Distribuidores de Veículos Autorizados do Distrito Federal (Sincodiv-DF).

"Só vejo a crise no noticiário"

Com salários iniciais que variam entre R$10 mil e R$12 mil, as carreiras de elite do Executivo, do Legislativo e do Judiciário chegam ao seu topo com rendimentos entre R$19 mil e R$24,5 mil, teto salarial para o setor público, mas, contando vantagens pessoais, muitos salários superam esse valor.

Policial rodoviário federal, Ricardo Rocha, de 40 anos, comemora a compra do segundo carro para a família, um Gol zero quilômetro adquirido este mês numa concessionária de Brasília. Ele e a mulher são funcionários públicos, e a renda conjunta supera os R$15 mil, o que permitiu a compra do segundo carro financiado.

- Fizemos as contas e vimos que seria possível assumir a prestação. Temos uma renda garantida no fim do mês. Não tem o risco de uma empresa privada. Só vejo a crise no noticiário - afirma Ricardo Rocha.

Se a venda de automóveis é um indicativo de como a crise não chegou ao Distrito Federal, é no setor imobiliário que isso fica mais evidente. O preço dos imóveis em Brasília é um dos mais altos do país - entre R$8 mil e R$10 mil o metro quadrado - e, ainda assim, o mercado tem uma demanda reprimida que só faz crescer o custo da moradia para as classes média e alta.

Há poucos dias, o governo do Distrito Federal colocou à venda um terreno de 170 hectares em área nobre de Brasília para a construção do Setor Noroeste - um bairro destinado à classe média e alta - e vendeu 90% dos lotes em poucas horas. O mercado estima que o preço do metro quadrado nessa área ficará em torno de R$8 mil, mas os valores podem subir ainda mais até a venda efetiva dos apartamentos.

- Brasília é uma cidade administrativa, e a estabilidade no emprego dá tranquilidade para trabalhar e gastar - observa Marcelo Oliveira, diretor da Paulo Otávio Empreendimentos, uma das maiores incorporadoras do Distrito Federal.

Ele descreve o perfil de seus clientes. Dois terços são funcionários públicos; em geral, o marido e a mulher trabalham no setor público e a renda familiar chega a R$20 mil, o que garante uma sobra para adquirir um bom imóvel no Plano Piloto - a área central de Brasília. Essa família compra depois outros imóveis para os filhos e assim contribui para manter a demanda aquecida.

- Esses dois terços (dos compradores) estão preservados. É um mercado cativo que não sofre com as intempéries - afirma o executivo.

"Se o consumo cai, a crise piora"

O Distrito Federal tem 181 mil funcionários públicos, de um total de mais de 1,1 milhão de trabalhadores. Estima-se que os servidores são responsáveis por cerca de 60% da massa salarial da cidade. A capital tem também um dos custos de vida mais altos do país.

Segundo Oliveira, essa parcela de clientes é conservadora e costuma aplicar em imóveis, o que também contribui para o aquecimento do mercado imobiliário no Distrito Federal. O fato de a cidade ser tombada como patrimônio cultural da humanidade reduz ainda mais os espaços nobres disponíveis.

Cláudio Júdice, de 64 anos, trocou em janeiro um apartamento de 150 metros quadrados por outro de 250 metros quadrados no Setor Sudoeste, outro bairro nobre de Brasília. Funcionário aposentado da Itaipu Binacional, Cláudio é fluminense e mora na capital desde 1975.

- Aqui não temos sentido essa crise. O consumo continua, mas se cair a crise piora, não é mesmo?

Setor imobiliário cresceu 25%

No ano passado, o setor imobiliário cresceu 25% no Distrito Federal, quase o dobro do crescimento do mercado paulista (13,6%), por exemplo. E a expectativa das lideranças empresariais é de um crescimento de 20% em 2009, mesmo que a crise econômica se torne mais aguda.

- Brasília não está totalmente imune à crise mundial, mas está protegida por suas peculiaridades. O poder aquisitivo da população é um dos mais altos do país, e 60% da massa salarial vêm dos governos federais e local - destaca o presidente da Associação dos Dirigentes do Mercado Imobiliário, Adalberto Valadão.