Título: Não há democracia nos porões, diz OAB
Autor: Tabak, Flávio; Aggege, Soraya
Fonte: O Globo, 15/02/2009, O País, p. 3
Traficante diz que "irmãos" e "primos" têm sido "suicidados" por causa de dívidas
SÃO PAULO. As dívidas de drogas são a principal causa dos suicídios forçados nas prisões comandadas por uma facção paulista, inclusive em estados como Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Paraná. Esses débitos e as mortes decorrentes deles teriam aumentado tanto nos últimos anos, que a facção proibiu a venda de crack para presos. O preços das drogas nas prisões chega a ser três vezes maior que nas ruas.
- Muitos "irmãos" e "primos" têm sido suicidados por causa das dívidas. O crack deixa o viciado sem controle e, por isso, foi proibido já na maioria das unidades. Mas há as dívidas de cocaína, principalmente, e de maconha - afirma um traficante que falou ao GLOBO sob condição de anonimato.
O advogado Antonio Everton de Souza, da Comissão de Direitos Humanos da OAB suspeita das chamadas "mortes naturais".
- Tuberculose e pneumonia não têm socorro e viram mortes naturais. Não há democracia nos porões. Mandam as facções e os chamados agentes do Estado. Não há lei alguma atrás dos muros - afirma.
Na hierarquia da facção, os "primos" são aliados fiéis. Os "irmãos" são os comandantes dentro das prisões. As cunhadas são as mulheres e irmãs dos primos e dos irmãos. Os irmãos respondem diretamente à "torre", que é o comando geral, dentro e fora das prisões, onde toda a hierarquia se reproduz.
- O primo pode traficar, assim como o irmão, mas o controle é rígido. Para cada caso, existe uma solução, sempre dentro da "lei" (decretada pela facção) - afirma o traficante.
"Se você vira uma laranja podre, tem que ser eliminado"
Para ele e outros entrevistados, inclusive parentes, as mortes não costumam ocorrer mais por estiletadas e sim por falsos suicídios.
- O sujeito é avisado (que deve morrer), ganha um prazo que a torre dá. Se o infrator é irmão, ele é até julgado, com direito a "advogado" e tudo o mais. Mas não há falha nem brecha, como nas leis de fora da prisão. Quando um camarada sugere o suicídio, ou entrega a garrafa de gatorade (água com cocaína para causar parada cardiorrespiratória) ou o kit (banco e corda), está dando a chance do outro morrer com dignidade, sem paulada nem nada, sem sangue. E nunca dá nada para a torre, porque vira suicídio ou morte natural - afirma o traficante.
Quando o preso é avisado de que "entrou no prazo", a torre geralmente autoriza os irmãos a torturarem. A principal punição é a perda de dentes. O preso geralmente tenta conseguir um "bonde", ou seja, uma trasferência de prisão. Dificilmente consegue, sem ordem da torre. Em alguns casos, em vez de ser morto, o "irmão" é simplesmente excluído da facção e obrigado a se tornar religioso.
- Para os "irmãos" que erram, é exclusão ou morte. No primeiro caso, é muito ruim, porque ele perde toda a moral e se humilha na religião - explica uma cunhada.
Além das dívidas de drogas, as penas se dão também para os alcaguetes e os chamados "coisas" (estupradores, policiais torturadores) e mesmo para aqueles que não pagam suas mensalidades à facção (em média R$25 para os presos e R$600 para os libertados).
- Se você vira uma laranja podre, tem que ser eliminado para não contaminar as outras pessoas. Os meninos não gostam de quem fraqueja - explica um "primo".
Em São Paulo, a Secretaria da Administração Penitenciária afirma que não omite dados. "As suspeitas não fazem sentido, uma vez que, para ser realizado, o quadro de óbitos depende dos referidos atestados", afirma a secretaria, em nota. (Soraya Aggege)
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