Título: Tragédias em família
Autor: Mariz, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 30/03/2009, Brasil, p. 09

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

A partir da análise de processos criminais, antropóloga constata que filhos agridem mais os pais e que os acusados são, na maioria, brancos e alfabetizados. Insanidade mental é a principal alegação de defesa

um drama milenar. Em 496 a.C., o teatrólogo Sófocles já explorava o parricídio, na figura do jovem Édipo, assassino do próprio pai. Na mitologia grega, Cronos quase matou o filho Zeus, salvo pela intervenção da mãe. São fábulas e tragédias que sempre povoaram o imaginário popular. Mas que não se restringem à literatura. A prova está em notícias cada vez mais frequentes de crimes semelhantes. Para saber mais sobre esses édipos e cronos da vida real, a antropóloga Daniela Moreno Feriani analisou detalhadamente 34 processos de homicídios intrafamiliares ocorridos em duas décadas, de 1982 a 2002. O resultado está na dissertação de mestrado recém-apresentada na Universidade de Campinas.

Daniela explica que o estudo rompe uma tradição na antropologia de investigar a violência doméstica apenas entre casais e tenta entender a visão do Judiciário sobre crimes de pais contra filhos e vice-versa. ¿Analisando os 34 processos, pude verificar que promotores, juízes e advogados se utilizam de retóricas no sentido de preservar a família. Tentam colocá-la como um espaço de harmonia e proteção, ainda que saibam que ela também é palco de conflitos e opressão¿, destaca a antropóloga.

O estudo evita cravar consequências da forma conservadora com que os crimes são tratados nos tribunais, mas aponta um alto índice de absolvição na amostra avaliada. Em 17 ações, o réu foi inocentado. Condenado em oito. E os 9 processos restantes acabaram arquivados por falta de provas, morte do acusado, entre outros motivos. Membro da Comissão de Sistema Prisional do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim), Fernanda Emy Matsuda concorda que o Judiciário é idealista em relação à família. ¿Não sei até que ponto isso pode estimular as absolvições. Mas há, de fato, na Justiça, assim como na sociedade, a ideia de que a família é um espaço a ser preservado¿, ressalta.

Motivos Entre os motivos mais alegados para o crime está a insanidade mental do réu. O argumento foi utilizado em 11 processos. Em dois, o acusado tinha problemas com drogas. Daniela constatou que a estratégia é mais convincente nos casos de filhos contra pais. ¿Quando os pais são os assassinos, o discurso vai pela moral familiar, explorando as posições sociais dos membros da família envolvidos. Aquele pai era amoroso, sustentava o filho? Se a mãe era desleixada, por exemplo, mesmo que ela seja a vítima, isso acaba favorecendo o réu¿, explica a antropóloga.

Até as testemunhas do caso acabam passando por essa análise sociológica e comportamental, diz Alexandre Sales, promotor do Ministério Público do Distrito Federal. ¿No julgamento técnico, isso não é levado em consideração. Mas, para o júri, ter esse perfil do envolvido conta muito na hora de decidir. E não é só em crimes entre pais e filhos. O rapaz trabalhador, honesto, estudioso, que ajuda a família, mas matou, será visto de uma maneira. Se o mesmo assassinato for cometido por um que já tem passagem pela polícia, que não trabalha, não é bom filho, a visão dos jurados é outra¿, explica Sales.

O perfil de réus e vítimas traçado por Daniela, com base na amostra de duas décadas de crimes, mostra que os filhos agridem mais. Acusados são, na maioria, brancos, com idade entre 20 e 32 anos na época do assassinato e alfabetizados. Do total de 48 vítimas, 28 eram homens e 20 mulheres. A faca foi o instrumento mais utilizado. ¿Esses dados quebram um pouco o senso comum de réus negros e analfabetos em crimes bárbaros¿, explica Daniela. A pena, na maior parte dos casos, variou de um a dois anos, por conta de atenuantes dos mais variados tipos. Apenas em dois processos os réus pegaram 18 anos de prisão.

-------------------------------------------------------------------------------- Analisando os 34 processos, pude verificar que promotores, juízes e advogados se utilizam de retóricas no sentido de preservar a família

Daniela Moreno Feriani, antropóloga